Para Entender Lacan | Parte 3
Por Christian Dunker
Aviso: este material é uma transcrição do curso “Para Entender Lacan”, realizado pela Casa do Saber e pelo professor Christian Dunker em julho de 2021. Por se tratar de uma transcrição, as frases não seguem necessariamente uma ordem ou linha de raciocínio semelhante ao de um texto escrito.
A Psicanálise, entre sua Ética e seu Final
Hoje nós vamos examinar a terceira parte do ensino do Lacan que é, de certa maneira, uma retomada do seu primeiro desenvolvimento. Para isso eu gostaria de voltar numa foto tirada em 1944, portanto durante a guerra, em que a gente tem o Lacan presente na reunião que leu e discutiu uma peça escrita pelo Pablo Picasso – mencionei de passagem que Picasso e Lacan eram próximos, Lacan era médico clínico geral de Picasso. Essa reunião fala muito do que a gente vai estudar na aula de hoje.
Da esquerda pra direita: Jacques Lacan, Cecile Eluard (esposa de Paul Éluard, poeta muito importante na resistência francesa, escreveu um poema sobre a liberdade, que foi jogado de aviões para a população francesa e se tornou uma espécie de hino da resistência), Pierre Reverdy (poeta surrealista), Louis Leiris (poeta também surrealista, mas antes de tudo um antropólogo, alguém que viajou pela África, pelo Oriente e que estava muito interessado naquilo que ele chamava de intradutibilidade entre as culturas – ele começou a escutar, investigar aquilo que você não... Você faz uma viagem, experiencia, tem ali uma linguagem, conjunto de ritos e que uma parte deles, eles são comensuráveis, tradutíveis, os mitos e linguagens que a gente dispõe, mas tem uma parte que não; ele era próximo de outro antropólogo que muito influenciou Lacan chamado Georges Bataille; inclusive Lacan casou com a mulher do Bataille, separando-se de sua primeira esposa para isso). Bataille tinha uma maneira muito interessante de olhar para as coisas e para a sociedade fazendo a seguinte pergunta: “e se a gente tentasse descrever uma sociedade não pelos seus monumentos, pelos seus valores apologéticos, aqueles que todo mundo acredita, e se a gente olhasse para uma cultura a partir daquilo que ela nega, que ela não suporta. Ele chamou esse olhar de “olhar da heterologia”, ou seja, a partir do outro da sociedade, e não do mesmo; a partir do diferente que está ali dentro daquela cultura e que, ao mesmo tempo, não pode ser propriamente nomeado.
Lacan vai achar muito interessante essa ideia. Também, se a gente olha aí está Pablo Picasso. Picasso tem várias fases – cubista, surrealista -, mas uma coisa que acompanha toda a sua pintura, toda a sua obra, é justamente esse debate com a deformação, como que a gente apreende às vezes melhor a coisa quando a gente a deforma do que quando a gente a coloca numa perspectiva bem formada, reta, coerente. Olha quem estava nesse encontro também: Simone de Beauvoir, junto com seu querido Jean-Paul Sartre. Tem um debate que começa e atravessa toda a primeira e a segunda fase do Lacan, pouco matizado esse debate, com o existencialismo e com a fenomenologia. A fenomenologia começa com um teórico chamado Edmund Husserl e na Alemanha tem uma continuidade no Heidegger, que a gente falou no nosso encontro passado, mas também no Karl Jaspers, que revolucionou toda a psicopatologia a partir dessa ideia central assim de que a gente estuda o patológico a partir daquilo que seria a formação do fenômeno, de como as coisas aparecem para alguém, não como as coisas são, mas de como elas criam um fenômeno.
Bom, a gente tem aqui também Albert Camus, que escreveu “A Peste”, “O Estrangeiro”, que era outro obcecado com aquilo que seria o ponto de abismo da subjetividade humana, o ponto que o sujeito não quer se confrontar com aquilo, com o que o Sartre chamaria talvez de a sua “náusea”, e que Camus chamaria de o seu “impossível”. Tem uma série de ideias aqui que estão nesse momento seminal – Lacan, não sei se vocês perceberam, é esse em pé mais à esquerda no quadro. Tem uma série de ideias que vão voltar lá nos anos 1964, 1966, os anos que vão se suceder à publicação dessa grande, talvez maior ou mais conhecida obra do Lacan, que chama-se “Escritos”. Então vamos para lá.
Eu vou apresentar agora algumas imagens que podem ser meio violentas, vamos dizer assim. Elas contêm nus frontais, tem uma razão de ser para isso, vou explicar, mas aviso vocês, então se tem crianças no recinto, gente que, bom, isso causa gatilhos etc., é só esperar um pouco e a gente continua depois da introdução, que é uma introdução que pretendo que seja didática ao principal conceito que vai ser desenvolvido nesse momento da obra do Lacan, que é o conceito de objeto a. A contribuição de Lacan à psicanálise está nesse conceito de objeto a. Para formar uma ideia do que é o objeto a, vou apresentar essas imagens para vocês. Estão todos aí prevenidos, avisados, espero que não tenha nenhum choque, mas aqui estão elas.
A primeira imagem é uma obra daquele que inaugurou a pintura realista na França – Gustave Courbet. Ele inaugurou esse movimento estético com uma pintura, Enterro em Ornans (1850). Esse quadro causou uma grande sensação não porque ele retratava com uma certa proximidade o órgão genital feminino, foi porque ele não mostrava a mulher toda. Foi porque esse quadro cria um efeito que é, assim, “quem é a mulher que está só representada pela metade?” Esse é o princípio do olhar pornográfico, do olhar que reduz a pessoa a uma parte. Sim e não. No caso do Courbet, o que ele queria era justamente questionar o que é a pintura, considerando a retirada de um aspecto do objeto, do tema, da forma central. Ou seja, a gente continua a ver ali uma mulher, tudo que nós temos não é uma mulher, pelo menos não uma mulher inteira, é uma parte dela. Isso tem a ver com a reflexão do Lacan sobre o objeto a. Ele vai dizer que o objeto a é uma parte, o objeto a primeiramente poderia ser definido como o objeto da pulsão. Sabem que a pulsão é um dos conceitos fundamentais da psicanálise e a pulsão tem uma fonte, ela tem um ponto de retorno (que é onde ela realiza a satisfação) e ela envolve o objeto. Essa é uma ideia lacaniana: ela não alcança o objeto, o objeto fica circundado pela pulsão sem que a gente saiba exatamente qual ele é. Eu acho que essa tela se presta muito bem para descrever isso. O que é o objeto? É esta parte, ou esta parte dentro da parte? Ou esta parte dentro da parte dentro da parte? É aquilo que esse quadro mostra, ou aquilo que ele encobre?
Lacan vai então problematizar a ideia do objeto como a fonte da satisfação. Satisfação vem, talvez, por acréscimo num movimento da pulsão, e não porque a gente encontre o objeto. Porque quando a gente encontra o objeto, a gente devia dizer que isso é um instinto. O instinto encontra o objeto, a pulsão não. O que ele não tinha muito claro é como a gente aborda esse objeto, já que ele tem essa peculiaridade de resistir a se definir como um objeto como os outros. Há dois motivos outros para eu escolher essa tela. O segundo motivo é que essa tela pertenceu a Jacques Lacan. Ela foi um objeto, vamos dizer assim, do próprio, de interesse do próprio Lacan e que ele mantinha essa tela escondida dentro de uma espécie de móvel na sua casa de campo em Guitrancourt e só mostrava essa tela a partir, assim, de uma espécie de ritual em que ela não era uma tela, então, para ser exibida publicamente. Com isso a gente já tem uma segunda característica do objeto a que é: ele está sempre relacionado com a lógica do seu próprio encobrimento. O móvel que escondia ele, o véu, a máscara, aquilo que encobre o fenômeno. Faz parte de um fenômeno, mas, por outro lado, é como se fosse um fenômeno que não se realiza completamente.
A Orlan, essa pintora contemporânea, fez uma citação, uma paráfrase muito interessante da tela do Courbet, que ela chamou de Origem da Guerra. Se o Courbet pintou a origem do mundo, ela pintou então o órgão masculino ereto como a origem da guerra. Isso nos serve para falar da diferença importante que o Lacan vai trazer entre o pênis e o falo. Ele vai dizer assim, olha, o falo tal qual eu introduzo, o falo tal qual é importante na clínica, o falo do qual Freud falava, mas talvez ele não tivesse esse conceito tão claro, não é o pênis. O falo, diz ele, é um significante. Portanto, o falo não é uma imagem, aqui como estou tentando trabalhar com vocês. Ele também é uma imagem no sentido de falo imaginário, mas o que ele está querendo discutir é o falo simbólico, enquanto ligado a uma função específica que é o desejo. Então a gente pode dizer assim, a tela do Courbet é mais fálica do que a de Orlan? Não. As duas estão no mesmo registro. Não é porque uma mostra uma coisa e a outra encobre que nós não estejamos falando da mesma coisa. No fundo, Lacan vai se inscrever numa tradição muito antiga de reflexão sobre sexualidade e que aparece no Freud, em que ele vai dizer assim, no fundo é como se a gente tivesse um sexo só. Que ele é referido, é tramitado nas relações entre o ser e o ter, nas relações do positivo e do negativo, mas que esse sexo não é o masculino e nem o feminino. O masculino e o feminino são versões desta relação, vamos dizer assim, monossexual ao falo.
Mas entre essas duas obras queria introduzir uma terceira, que é a obra final da vida desse surrealista, Marcel Duchamp. É uma obra que compreende uma porta e um orifício por onde a gente pode olhar. E por esse orifício a gente tem acesso a esta imagem envolta em um fundo negro, em que a gente vai olhar um corpo, vai enxergar um corpo, inclusive um órgão, um corpo que pode ser feminino, parece ali que tem um seio à frente. E a gente vai enxergar um órgão genital feminino. Só que se você olhar bem, não é possível que assim seja. Ele tem uma implantação que não combina com o resto da imagem, que é fonte de estranhamento que diz assim “olha, tem algo fora do lugar aqui”. Duchamp está realizando uma das teses do Lacan sobre estética que diz assim, os quadros, as telas são armadilhas para o nosso olhar. Nós achamos que estamos soberanos, definindo o que nós queremos ver, que nós estamos olhando, quando, na verdade, estamos sendo olhados, interpelados por essas telas. Por isso que elas nos causam algo, como se diz hoje em dia, “gatilhos”. Porque nós somos olhados, surpreendidos mais além de onde a nossa visão, onde a nossa perspectiva ocular consegue perceber. Então, para que servem essas imagens? Para a gente ver a diferença entre o falo, a imagem fálica e o que ele chama de objeto a.
O objeto a é essa deformação, essa presença-ausência, essa repetição daquilo que seria o falo no real. Estamos separando o falo no imaginário – aquilo que completa a minha imagem egóica, que daria para o Eu a consistência e a unidade que ele pressente que não tem. Lembra da primeira aula em que a gente falou sobre a formação do Eu ser a formação de um duplo, não de um indivíduo, mas é de um Eu e sua sombra. Por isso há uma tensão permanente dentro do Eu de que ele pode se desfazer, se fragmentar, ele tem uma espécie de insegurança básica que decorre dessa estrutura. Porque como é dois, você nunca sabe qual é a sombra, qual é o objeto real. Como é dois, tem uma estrutura de intervalo. O que é o falo imaginário? É aquilo que a gente coloca nesse intervalo para estabilizar a imagem do Eu e para tranquilizar o Eu, dizer para ele “olha, você é isso, essa imagem”. Estão vendo aonde quero chegar, né? Depende da imagem, de como eu me coloco usando uma imagem para acabar com essa dualidade que tem no próprio Eu. Só que essa dualidade recorre a outro problema, que diz respeito ao desejo humano. E aí é diferente, porque não estamos falando mais do falo imaginário, estamos falando daquilo que move o desejo humano. Isso, para Lacan, a gente já passou aqui, passa pela falta. Portanto, não é um intervalo entre as duas faces do Eu, é a falta. E esta falta pode estar do lado do sujeito ou do lado do outro. Como é que eu articulo essa falta? Com o significante fálico.
Vamos estudar um pouco sobre o que é esse significante fálico, como ele é importante na estruturação da nossa subjetividade, como ele promove identificações tanto no homem quanto na mulher, como ele provoca identificações que são, no fundo, articuladoras da relação do sujeito com a lei, e isso tudo, então, faz com que o falo enquanto significante tenha uma propriedade muito interessante. Ele nunca é inteiramente pronunciável. Vamos dizer que eu pergunte para vocês: vocês têm aquele grande amor, aquela pessoa que é extremamente desejada, mas o que tem de desejável? Ou seja, o que faz essa pessoa desejável? Vocês podem que dizer que tem o cabelo assim, o rosto assim, esse charme... Todas essas nomeações são de imagens, de traços positivos, de falos imaginários, de versões do falo imaginário, porque se vocês de fato desejam alguém pela imagem que aquela pessoa possui, eu vou dizer que isso não é o verdadeiro desejo. Isso é uma demanda. Eventualmente vocês podem até amar essa pessoa, bastante, mas o desejo só aparece quando este outro contém algo impronunciável. O que eu desejo nele ou nela é um it, um isso, um indefinível, porque no fundo esse indefinível é uma forma de a gente nomear o desejo do outro que eu profundamente quero, inclusive às vezes quero possuir, mandar, ter razão e o desejo do outro. E como o desejo do outro, em tese, não é nada, é um movimento dado pelo vazio, pela falta, o que eu desejo no outro é a falta do outro, e não o que ele tem. Isso, então, coloca, quando estou a desejar o outro, coloca o falo, identifica o falo no outro.
Temos então uma terceira pergunta, que é: e se eu olhar para esse objeto, se eu quiser pensar esse objeto não só no imaginário, nem no simbólico, mas pensar esse objeto no real? O que ele é no real? Vocês lembram que o real é, para Lacan, o impossível, mas também aquilo que se repete, mas também aquilo que é próprio da pulsão, próprio do trauma (trauma é um bom exemplo de como o real pode incidir num sujeito). Trauma sexual, o trauma da violência, ou seja, algo que excede o simbólico, que excede a capacidade de elaboração, inclusive excede a capacidade de imaginarização. Quantas crianças que estavam dormindo bem, daí chega num determinado momento, sei lá, 4 ou 5 anos, e começa a ter pavores noturnos, pesadelos? Acordam, querem ir para o quarto da mãe e dizem que tem um monstro, um jacaré, um bicho, um medo que eu não consigo dar nome. Enquanto não consegue dar nome, ela sofre dessa que é, para o Lacan, a única forma de a gente subjetivar o objeto a, que é a angústia. Vejam só: angústia é um efeito da pulsão. Para Freud, sentimos angústia quando a pulsão se separa da representação, quando a pulsão se separa da imagem, do pensamento, da história, da explicação. Quando isso está desligado, experimento a mim mesmo com angústia. Lacan diz que essa teorização de Freud é uma pista, mas não esgota o problema, porque para Freud, assim definida, a angústia seria sem objeto. No medo a gente tem o objeto (vamos pensar a Covid, é um medo do vírus, mesmo que seja um objeto invisível, mas eu tenho medo desse objeto). Se eu tenho medo, posso agir sobre ele, posso atacá-lo, e ele pode agir sobre mim, eu posso ser atacado. Então em que posição vou estar, ativo ou passivo em relação ao objeto? É uma decisão que posso tomar para formar, então, um juízo que vai se ligar com um determinado ato, o que Freud chama de uma ação específica.
Eu posso, em vez de ter o medo, ter a falta do objeto. Escuro, por exemplo. Tenho medo do escuro, mas o que tem no escuro? Não sei. Tenho medo de algo que eu não sei o que é. Ou no pânico: vou morrer, estou tomado por uma ansiedade vertical. Mas o que vai acontecer, está com medo do quê? E a pessoa diz, não sei do que estou com medo, mas estou com muito medo. Para Freud, então, você tem uma angústia como ausência de objeto. Quando você tem objeto, medo, quando não tem, angústia.
Lacan vai olhar para isso e dizer que há um problema. Um problema que diz respeito à confiança que Freud tinha da fenomenologia dos objetos em geral. Essa fenomenologia, ou seja, do que são os objetos em geral, como eles se mostram, quais são as condições para que isso aconteça, Freud tinha herdado de sua formação um pouco como filósofo, em filosofia, mas também em ciência. E essa formação entrou muito embrenhada do pensamento filosófico do Kant. Immanuel Kant. E Kant, por sua vez, tinha, na sua fenomenologia, na sua teoria de como as coisas aparecem, uma confiança muito grande num cientista chamado Newton. Para Newton, vocês conhecem da escola, os objetos têm que estar numa certa relação entre o espaço e o tempo. Se não estiver no espaço e no tempo, o objeto não vai aparecer para mim como um fenômeno. E mais, os fenômenos vão aparecer, então, também em categorias do sujeito que são categorias universais. Qualidade, esse objeto vai ser amargo ou doce, quantidade, esse objeto vai aparecer como doze canetas, ou duas canetas, ou uma caneta, relação, vou olhar para esse objeto e vou pensar que ele pode virar outro, uma montanha de ouro que pode virar um anel; e também modo, em que modo esse objeto aparece para mim? No modo do necessário, do contingente, do possível ou do impossível?
Tudo isso veio, então, para definir no Kant que o objeto tem que estar no tempo e no espaço, e o que eu entendo por tempo e espaço é o que o Newton entende. O que eu entendo por quantidade, qualidade, modo e relação é mais ou menos o que Aristóteles entendia por isso. Então estamos fechados aqui. A ciência que se faz é ciência desse tipo de fenômeno. Lacan vai trazer só, porque ele diz contribuição para a conversa dizendo assim: depois de Kant, Newton, a gente teve Hegel, mas a gente teve o Einstein, teve todos os desenvolvimentos da física, da termodinâmica, da mecânica quântica, a gente sabe, agora, que não é verdade essa teoria dos fenômenos que o Kant apregoava como a única. Ou, pelo menos, a gente sabe que ela não é única, que existem outras. Por exemplo, para Kant o espaço devia ser, vamos dizer assim, retilíneo. Einstein mostrou que, bom, o espaço tem uma estrutura esférica, ou circular. Então duas retas vão permanecer retas paralelas ao infinito. Não, elas vão se tocar em algum momento, porque o espaço é curvo. E começam também autores da geometria e da topologia a dizer que é possível considerar a existência de espaços não-tridimensionais, como queria Newton. É possível pensar quatro, cinco dimensões, isso não é nenhuma ficção científica, é simplesmente decorrente de que a gente enxerga e experiencia o espaço em três dimensões em função dos nossos órgãos de sentido, não da existência real só de objetos em três dimensões. Acho que fica claro para todos vocês, né, fazendo uma analogia: os cachorros escutam ondas sonoras que a gente não escuta. Aquelas ondas sonoras que a gente não escuta não existem para a gente, mas elas são reais. Estão entendendo o conceito de real no Lacan? A onda sonora que o cachorro escuta, mas que nós não, é uma onda real. Ela pode vir a ser escutada com mediadores simbólicos que permitam que a gente tenha a experiência conjectural, cognitiva, representacional desse som, mas a gente não o experimenta com esses instrumentos dos quais somos dotados. A nossa visão, audição, tato, paladar. Para quê tudo isso?
Lacan vai dizer sobre o objeto a que ele não está cernido pela estética transcendental do Kant. Ele não é acessível, ou seja, para os nossos órgãos dos sentidos, mas ele não é uma coisa transcendente, um objeto como a justiça, a beleza, objeto conjectural. Ele é um objeto, vamos dizer assim, do plano sensível, mas inacessível à sensibilidade direta da nossa experiência. Caramba. Bom, isso vai levar ele a um avanço na teoria da angústia em que ele vai dizer que a angústia não é sem objeto. Ela tem um objeto. Só que é um objeto que é invisível, inaudível, fora do paladar, fora da nossa capacidade de tradução perfeita. Então ele nos afeta, pode nos afetar, sem que a gente saiba que a gente está sendo afetado pelo quê, exatamente como o problema do medo e da angústia lá no Freud. Ou seja, o Lacan está também transformando, modificando o que seria, assim, o conceito de saber.
Saber comporta o saber inconsciente. Nem tudo que a gente sabe deveria estar associado à consciência. Freud descobriu outro tipo de saber, que o saber inconsciente. Lacan está expandindo esse saber, dizendo que nele também cabe a experiência desse objeto, a experiência num sentido muito peculiar de experiência. Vamos ler isso aqui num dos textos mais difíceis e mais importantes da metapsicologia lacaniana. Texto lido num congresso para o curso de filosofia, um congresso onde estavam presentes muitos filósofos dialéticos. Lacan foi lá dizer por que a psicanálise é uma experiência dialética, apresentar um modelo matemático da subjetividade que vocês podem ver aqui abaixo, chamado o modelo do grafo. Não vou explicar todo esse modelo, mas ele é basicamente uma relação entre o andar debaixo, marcado pela linguagem enquanto significante e voz, um espaço dentro dele que é o imaginário, onde está o estádio do espelho, e o andar de cima, onde a gente tem uma certa relação entre o gozo e a castração – opa, palavra nova, “gozo”. De fato, o objeto a que vai ser desenvolvido junto com uma teoria do gozo, uma teoria crítica à ideia de que a gente pode falar da nossa experiência perfeitamente usando só dois conceitos, o de prazer e o de desprazer. Lacan vai dizer que não. Se o objeto a está além da nossa sensibilidade, e se a nossa sensibilidade criou esse parâmetro do prazer-desprazer, satisfação-não satisfação, preciso de um novo termo para dizer o que acontece nisso que sou afetado mais-além da perfeita inclusão aos meus sentidos. Daí ele vai dando mais e mais força para o conceito de gozo.
Assim o órgão erétil vem a simbolizar o lugar do gozo, não com ele mesmo nem tampouco como imagem, mas como parte faltante da imagem desejada: por isso ele é igualável ao √-1 da significação (Lacan, J. Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 837-838).
A gente viu há pouco na Origem da Guerra o órgão erétil. Intuitivamente a gente pensa, primeiro tem o órgão erétil, daí o falo vem e simboliza o pênis – não, o órgão, o próprio órgão, a experiência do órgão é simbólica porque ele vai ocupar o lugar do gozo, não do prazer, nem do desprazer. Quem lembra um pouco de matemática vai lembrar que √-1 não pode, a gente não consegue calcular raiz de números negativos. Então isso que o Lacan está dizendo é uma impossibilidade. Se também se lembrarem de outras coisas dos cursos básicos de matemática, a gente pode operar com √-1, podemos chamar isso de número imaginário, “i”, aí você tem 2i, 3i, soma, multiplica, faz i², e isso serve para operar com isso que, na origem, é tipo um problema parecido com o problema do 0. O zero é um número ou não? Então por que não podemos dividir por zero? Por que não podemos calcular √-1? Não sabemos direito. Ele está dizendo que o falo, então, é o “isso” que posso aludir na significação e que a gente pode traduzir por aquilo que está no horizonte do que quero dizer. Só que as pessoas querem chegar numa espécie de conclusão, de entendimento, de fusão de pensamento de tal forma que aquilo que estou falando seja perfeitamente replicável na mente de vocês. Aí vocês dizem que a aula foi boa porque entenderam tudo. Para o Lacan a aula não é boa se você entendeu tudo. Porque se você entendeu tudo, você está se identificando demais com esse √-1. É impossível entender tudo, impossível esse decalque de representações ou de perfeito acoplamento dentro da linguagem. É impossível e o que representa essa falta, essa parte faltante, essa parte que é também uma imagem faltante, é o √-1, o falo.
Ele [o falo] institui o predomínio, no lugar privilegiado do gozo, do objeto a da fantasia que ele coloca no lugar do Ⱥ (...) fantasia onde o sujeito se coloca como instrumento do Outro (Lacan, J. Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 837-838).
Vamos tentar ler isso aí. O falo, por se alocar justamente ali naquilo que é impossível de a gente perceber, por ele tampar a nossa dualidade egóica, vai circunscrever, vestir o objeto a. O que eu consigo perceber do objeto a nunca é o objeto a ele mesmo, mas é o falo. Existe uma relação, portanto, entre o falo e o objeto a, e esta relação isola o que ele chama ali de “lugar privilegiado do gozo, do objeto a da fantasia”. A fantasia, para Lacan, se escreve como vocês podem ver no grafo, tem o significante, do lado do significante tem esse s(A), que é o significado, ou o grande Outro. Em cima a gente vai ter o Ꞩ◊a (sujeito barrado, pulsão, a). Pulsão (◊) é uma invenção do Lacan, no fundo para designar relações lógicas de adição e de alternatividade. Eu mais esse objeto, Eu menos esse objeto, Eu maior que esse objeto, Eu menor que esse objeto; Eu ou esse objeto, ou eu, ou ele. Essas são relações muito primárias que regulam nossa fantasia e, consequentemente, nossa relação com a lei e a interdição, e a nossa relação com o prazer e desprazer. Do que estamos falando? De como, na nossa fantasia inconsciente, a relação que regula nosso desejo é com um objeto que não pode ser propriamente representado, imaginarizado, mas que, nos modos de relação com o sujeito, mesmo assim, definem produção de sintoma, definem angústia. O que acontece na angústia? É como se essa pulsão parasse de funcionar e o sujeito tivesse então ali, pelo buraco formado por esse losango, ele pudesse incluir por um instante um objeto. O que acontece? Angústia. Pane na fantasia. A fantasia não está funcionando muito bem, não está me enganando, me permitindo deseja, eu estou vendo as coisas como elas são, ou a coisa como ela é. Eu não estou vendo coisa nenhuma, só estou percebendo, quando isso acontece, a minha própria angústia. Tudo bem? A fantasia não é um cenário, tipo assim, aquela praia onde então haveria aquela coisa, aquele encontro, aquela cena sexual... Isso tudo é um imaginário que a gente cria para o essencial, que seriam esses modos de relação com o objeto. E o objeto, aqui na nossa fantasia, nesses modos de relação, tem uma função. Uma função muito importante, a função de causa do desejo.
Esse objeto não é só o objeto da pulsão – oral, anal, fálica -, uma pulsão que o Lacan valorizou muito. Função escópica, do olhar. O olhar é uma pulsão super importante, assim como o ouvido, ouvir, ele também comporta uma pulsionalidade. Esse objeto, desde que ele esteja num certo lugar, funciona resolvendo o enigma dos enigmas, que é “por que eu desejo uma coisa e não outra?” Por que uma profissão, uma pessoa, um dia e não outros. Objeto a é a resposta. E nesse objeto dessa fantasia a gente se coloca então não só, como eu disse, possuindo, pegando, se aproximando do objeto, mas também como objeto para o outro. Muito difícil isso. Na nossa fantasia a gente acha que está ativo, opa, estamos passivos. E muitas vezes a gente acha que está passivo e estamos ativos, porque é próprio da ilusão da fantasia essa inversão inconsciente.
_O neurótico, de fato, histérico ou obsessivo ou ainda mais radicalmente fóbico é aquele que identifica a falta do Outro com sua demanda, Φ com D. _(Lacan, J. Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 837-838).
Identifica o Φ com aquele significante, aquela imagem que encobre a falta no outro, e daí eu pego isso e digo “é isso que o outro quer”. Quer que eu seja, que eu desempenhe, que eu dê para o outro, que eu idealize no outro. Vejam aí a definição a que a gente chegou. Histeria, neurose obsessiva, a fobia, são identificações – é uma definição que ele está dando – que envolvem o falo e a identificação desse falo com a falta do outro. A função desse falo como aquilo que encobre a falta do outro.
Daí resulta que a demanda do Outro assuma a função de objeto de sua fantasia. (Lacan, J. Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 837-838).
A demanda é sempre demanda de amor, de signo de amor. A demanda do Outro é aquilo que a gente pode pôr em palavras, que a gente pode objetivar do desejo do Outro. Do que ele quer de mim. Muito importante, muito orientador. Quando a gente vê alguém que diz “não sei mais o que o Outro espera de mim” (inclusive para não o fazer, para recusar), a pessoa começa a sofrer porque está perdida, desorientada, não sabe o que quer, onde se colocar como sujeito. É bem grave quando isso acontece.
O falo na falta, a falta na demanda, a demanda no objeto. Uma cadeia de três véus. Então, primeiro, tem aqui uma coisa mágica, deliciosa, atraente. Daí você vai, tira o primeiro véu e percebe uma falta, uma pergunta, alguém que está me demandando algo, pedindo algo, o que ela quer de mim? Segundo véu, “o que quer de mim?” O objeto, que eu assuma função de objeto na fantasia, função de objeto para o outro, o que é também bastante angustiante. Mas então, vamos em frente.
Agora vamos falar de uma modificação, assim, metodológica que o Lacan vai trazer para a psicanálise.
É esse novo tipo de geometria, uma geometria não métrica, ou não necessariamente métrica, uma geometria de relações. Relações que envolveriam então certas relações de vizinhança, de fechamento que jogam com quatro ou cinco figuras, quatro ou cinco objetos desse novo tipo de geometria conhecida como topologia. Ele vai trazer isso com o seu aprofundamento do estudo sobre linguagem. Lembra que a gente falou que a linguagem para o Lacan, desde Saussure, pode ser pensada como uma folha de papel? Uma superfície, portanto. Essa superfície tem um lado de baixo e um lado de cima. Quando recorto essa superfície, faço uma linha com uma tesoura, vou separando a superfície em duas partes, e vou recortando de um lado o significante e, do outro lado, o significado. De um lado o valor do significante, do outro lado a significação do significado. Imaginem que quando a gente fala, a gente vai recortando essa superfície, teoricamente superfície infinita e dotada de alguns buracos que se deslocam – pontos que, se eu for cortar, opa, ali já tem um buraco. Como a gente chama esse buraco? Falo, representante da falta. Ah, então eu vou tentar cortar sempre na direção que me leva para esse buraco. Isso seria uma representação do nosso falar, falar como uma linha que a gente vai desdobrando. E lembrem, a análise é uma linha que a gente vai desdobrando com intervenções do analista. O que são essas intervenções, como o Lacan chamou? Corte. Quer dizer que a análise então é como se tivesse uma tesoura cortando a superfície da linguagem e vem outra tesoura, a tesoura do analista, que também está recortando essa superfície. Legal, então assim a gente consegue representar a fala – fala o analista, o analisante, silêncio, vem e volta em outra sessão, outro ponto -. A gente consegue representar tudo isso usando uma superfície.
Agora, existem diferentes superfícies, e uma se transforma na outra, essa que é a graça. Lacan vai jogar com quatro ou cinco dessas superfícies. A primeira é a esfera, que ele vai dizer assim, é o engano mais básico que todo mundo tem, de achar que a gente é uma esfera, que tem o mundo lá fora e um aqui dentro. Tem um mundo público e um privado, o corpo e o fora do corpo. Lacan diz que estamos sendo pouco rigorosos, mesmo se imaginamos assim um indivíduo dessa forma, estamos esquecendo que tem um tubo – boca, ânus -, então a gente é uma esfera com um tubo, furada, que vai de um lado para o outro e tem um ponto de comunicação do dentro e do fora. Dois pontos, se vocês quiserem. Então a gente tem a esfera e esse tubo que é representado pelo toro, como uma figura topológica semelhante a uma boia de caminhão, que é um tubo fechado sobre si mesmo.
Depois disso ele vai falar, no cross-cap, que é a estrutura da fantasia. Ele vai falar na garrafa de Klein, que é a estrutura do tratamento psicanalítico, e para a gente entender a garrafa de Klein e o cross-cap, a gente precisa de uma outra estrutura que é, assim, a dobradura de uma superfície, que é a chamada banda de Moebius. O desenhista e artista plástico holandês Escher, que desenha aquelas escadas que se comunicam com... Parecem que estão subindo, mas estão descendo, e vice-versa, aquela água que parece que está descendo, mas também está subindo, aquelas mãos que se entrelaçam uma desenhando a outra, aquela formiga andando numa banda de Moebius, que ela continua andando infinitamente sem ter um ponto de corte.
Então, para ser assim bem rápido, um cross-cap é uma esfera mais uma banda de Moebius. Uma garrafa de Klein são duas bandas de Moebius, de torções invertidas, costuradas juntas.
Isso é toda uma nova maneira de pensar conceitos e de pensar em psicanálise. Tanto no sentido da teoria, quanto no sentido da clínica. Vocês imaginem que enquanto o paciente está falando e as transformações vão acontecendo, a gente pode representá-las espacialmente fugindo aí das três dimensões – por exemplo, a garrafa de Klein é uma superfície em quatro dimensões. O toro que vocês veem na imagem é em duas dimensões. O cross-cap exige quatro dimensões também.
Vamos ler:
O neurótico é o normal, na medida que para ele o Outro com A maiúscula [Autre} tem toda sua importância. O perverso é o normal na medida em que o falo, o grande φ, que vamos identificar com este ponto que dá à peça do plano projetivo toda sua consistência, o falo tem toda sua importância. Para o psicótico, o corpo próprio, que se deve distinguir em seu lugar, nessa estruturação do desejo, o corpo próprio tem toda sua importância. (Lacan, J. (1961-1962) O Seminário Livro IX: A identificação. Centro de Estudos Freudianos do Recife, p. 398).
Uma passagem bonitinha, né, porque ele está criticando aqueles que pensam que, no fundo, o neurótico é o normal. As patologias pesadas são ou perversão (o sociopata, o psicopata) ou a psicose (esquizofrenia, paranoia, melancolia). Lacan diz que não é bem assim, cada qual tem o seu ponto de questionamento, o seu ponto problemático, e os três estão igualmente importantes. Mas em um a importância está no outro, no perverso a importância está no falo e no psicótico a importância está no outro. O que a gente tem aí pode ser então exemplo de três identificações diferentes que ele vai tentar teorizar a partir dessa boia aqui.
Vocês estão vendo que a boia é composta por giros? Por uma espécie de enovelamento, de voltas na sua construção. Vou dando volta até que eu vou encaixar o 1 no 2. O fio da meada, a ponta no começo. Isso é uma identificação, então. Só que, diz o Lacan, essa identificação (que formaria um outro completo – identificação neurótica, vamos dizer assim) ela não acontece. Eu vou girando para frente ou para trás e o 1 passa, e o 2 passa, e eles não se encontram. Ou seja, a identificação é em certa medida uma ilusão de que o 2 faz o 1. De que o 1 mais 1 ele se encaixa. Essa identificação faz com que, na neurose, a gente olhe para o outro e pense que ele tudo sabe, que o Outro (pode ser o sistema, a internet, o mundo, Deus, são figuras, assim do outro; a razão, o sexo) e também aquele que representa o Outro (o juiz, o professor, o médico...) é um Outro sem falta, sem buraco. Aliás, esse é um dos dramas da neurose, passar a vida obcecado se perguntando muito mais sobre o Outro do que sobre nós mesmos, porque você pode dizer que há tanta gente egoísta, que só pensa em si... Trocando em miúdos, escutando a pessoa, ela vai te dizer sempre mais ou menos o seguinte: estou tão preocupada comigo, em ganhar o meu dinheiro, ter as minhas coisas, porque aí o outro vai me amar, me querer, me respeitar, me reconhecer, aí o Outro. O seu egoísmo é feito de um “outrismo”, de uma paixão inconsciente, uma submissão inconsciente ao Outro. Ou seja, é aquele que está querendo fechar essa boia, fazer com que o fio 1 uma hora se junte com o fio 2.
O que o sujeito esquece enquanto está preocupado com o Outro? O que ele não conta? Que nesse voltar sobre si mesmo ele criou um outro furo, um furo central. São dois furos – um em torno do qual a pulsão e a demanda vão girando em volta (que é a cada vez, a cada encontro, esse jogo do estamos girando em torno de algo que a gente não sabe exatamente o que é, mas que é, na sua continuidade, o nosso desejo, o que estamos trocando, negociando, identificando, mas que só cedemos e chegamos perto dando voltas em torno, como uma órbita) e nisso a gente esquece o buraco do meio, que é o falo, que é o -1, a falta, o que se criou enquanto se estava procurando como agradar os outros, como se fazer reconhecer pelos outros, como descobrir o que você quer. Então temos duas identificações.
Só que aí o Lacan hipotetiza o seguinte: imagine que esse toro é o do sujeito e que ele se encaixa num outro toro, que é o toro do outro, da mãe, explicando a relação tão íntima entre a mãe e seu filho, entre o sujeito e seu Outro. Essa mãe que contém, inclusive, o pai dentro de si. E daí vocês vão ter que fazer o exercício de imaginação que é: como se esse 1, juntando com esse 2, começasse, a partir de uma estrutura de inversão do tipo banda de Moebius, uma torção, a criar outro tubo, outra boia, que seria encaixada nessa boia número 1 justamente nesse buraco, ocupando o lugar desse buraco e dando a volta, encaixando-se perfeitamente no toro número 1. Então o que acontece? A gente vai passando do nosso toro, da nossa demanda, para a demanda do Outro. Do nosso desejo para o desejo do Outro. Por causa desse ponto da banda de Moebius e sem perceber – essa é a loucura humana, a relação que a gente tem corporal de unidade com o Outro. E aí é o corpo do gozo, não mais o newtoniano, do indivíduo. Vamos em frente.
Do objeto a ao gozo. Qual é a relação entre essas duas coisas? Estão vendo que estamos falando do objeto a, mudando perspectiva, quer dizer, aqui o que é o objeto a? O buraco recoberto pelo falo, o objeto a é o que soldaria o 1 com o 2. E o objeto a é aquilo que passa de um sujeito para o Outro e volta do Outro para o sujeito. Vou ficar circulando entre um e outro – está do meu lado sem que eu perceba, está do lado do outro sem que eu perceba também, e que eu tento apreender nessas voltas. O objeto a, afinal, é aquilo que causa o meu desejo. O objeto a estaria nessa linha aqui do meio da boia desde que a gente considerasse a linha do meio da outra boia também. O objeto a faz essa junção.
Aqui é um texto muito importante do Lacan que foi pedido para uma coleção que ia editar as obras completas do Marquês de Sade. Daí ele escreve um texto mostrando como a filosofia do Sade, contida no Filosofia da Alcova, 120 Dias em Gomorra, que são os dois textos que ele mais estuda, como a filosofia do Sade é curiosamente parecida com a do Kant. Lembre que ele está às voltas com Freud, com o objeto da pulsão no Freud, porque o objeto da pulsão em Freud é muito kantiano, e agora tem outro passo nessa conversa, que ele vai afirmar que o objeto kantiano é uma outra face do objeto sadeano. Os dois estão juntos e casados. Tudo bem que não é uma originalidade, o Adorno tinha tido essa mesma ideia, o Foucault tem uma ideia semelhante, o Lacan possivelmente acompanha essa direção. Isso, para nós, a filosofia ética e política, é muito importante, porque lembrem que o Lacan está clinicando, pensando durante a guerra. Ele viveu duas guerras, de 1914 a 1918, e de 1939 a 1945. E o momento onde o pensamento ocidental se deparava com essa questão de desde a modernidade, Descartes, da saída da Idade Média, nos considerarmos em progresso, conquistando a natureza, tornando as condições civilizatórias melhores, vencendo doenças, conseguindo povoar e ocupar o mundo, criar uma coisa chamada indústria – isso tudo é progresso. Estávamos nos aperfeiçoando, nos tornando seres mais éticos – imaginava-se assim, com Kant era mais ou menos assim. De repente vem uma coisa, na realização máxima da modernidade, chamada campos de concentração. Extermínio de 6 milhões de judeus. O conjunto de nações que começam a operar de uma forma, para dizer o mínimo, enlouquecida, mas uma loucura que não é exterior à tecnologia, à razão, ao progresso. Grande pergunta que Sartre, Camus, todos aqueles que estão na foto do começo, todos eles estão pensando “como é que aquilo deu nisso?” Nosso melhores ideias, investimentos na criação de um indivíduo autônomo, independente, definido pela sua relação à lei em estados democráticos... De repente a gente tem câmaras de extermínio, campos de concentração. E fora a barbárie generalizada da colonização. Começa a ficar claro que aquilo não era uma exceção, não foi um problema dos alemães que estavam picados pelo gene da loucura, era algo interno ao processo. Onde a gente errou? Onde não vimos uma relação que tinha ficado de fora e que agora estava fazendo falta?
Resposta do Lacan é que para entendermos essa pergunta, temos de entender como Sade (pensador das sombras, do obscuro, da crueldade, do pior) e Kant (e seu esclarecimento, o iluminismo) estão juntos.
_Não perguntemos se é necessário ou suficiente que uma sociedade sancione um direito ao gozo, permitindo-se que todos valerem-se dele, para que a partir daí sua máxima pretexte uma lei moral. Nenhuma legalidade positiva pode decidir se esta máxima é capaz de assumir a categoria de regra universal (...) A bipolaridade pela qual se instaura a Lei moral não é nada além da fenda do sujeito operada por qualquer operação significante: nomeadamente, do sujeito da enunciação para o sujeito do enunciado. _(Lacan, J. (1963). Kant com Sade. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, pág. 780-781).
Questão interessante: como o gozo é uma categoria que vai ter várias ramificações (na linguagem, política, ética e como uma categoria que vem do direito também). Por exemplo, o direito regula as nossas relações de uso, posse e propriedade. Conceito básico do direito moderno: propriedade. Você é dono de uma coisa, mas ele veta que você seja dono de uma pessoa. Três noções básicas do direito são: uso (posso usar, mas não é meu), posse e propriedade. Lacan diz que o direito deixou de fora a questão do abuso ao ser pensado dessa forma e como uma relação de contrato (conceito-chave também no Kant – indivíduos livres fazem contratos livres pelo uso livre da razão, posso pactuar com o outro na medida em que uso a razão em estado de maioridade). E o abuso, como entra nisso? Pensem nisso da maneira mais simples – você tem uma cadeira, que você pode usar, trocar, alugar, ela é sua; mas você pode abusar de uma cadeira, pode quebrá-la, usar como suporte para sua destrutividade – ali onde está o abuso, ali está o gozo. Ali onde está o uso – você pode dizer que o uso vem com prazer, com satisfação, mas entrou no abuso, gozo. E gozo, portanto, é algo que passa pela lei, pelo direito, que reparte algo do gozo, mas não sanciona um direito a gozar.
Lacan fala com uma parte da teoria do Kant que diz: agir moralmente é agir como se sua máxima, que preside sua ação, pudesse ser erigida, generalizada em uma lei universal. Quando a gente age como age é porque existe uma máxima que estipulou esse modo de agir e de se relacionar. Age de tal maneira que o teu modo de relação possa ser erigido em lei universal – que todos possam agir e se relacionar como você age e se relaciona. Trate os outros como você quer ser tratado, com dignidade. Como se dá essa inversão? A máxima do meu tratamento aqui pode, sim, ser elevada a uma lei universa, que é todo mundo se tratar com dignidade, e não com indignidade.
Ele, Lacan, infiltra uma perturbação no método kantiano ao dizer que eu posso erigir em universal algo que não tenha uma máxima clara e definida. “Nenhuma legalidade positiva” – nenhum código penal, jurídico – “pode decidir se esta máxima é capaz de assumir a categoria de regra universal” (ou não, se estou de fato, ou não, no meu ato concreto, agindo de acordo com a universalidade). Vamos pensar o seguinte, a pessoa está dentro de uma igreja, ajoelhada, com a mão em sinal de oração, mas dentro de si está blasfemando, falando mal dos outros, corroída de inveja, tomada pela destrutividade. A regra que rege essa ação qual? A ação de se colocar dentro de uma igreja respeitosamente, com seu corpo deste jeito? Ou o que você está pensando quando comportamentalmente reza? Lacan está dizendo que a gente não consegue, e o Kant não resolveu esse problema, juntar as nossas intenções com as consequências dos nossos atos. Ninguém pode, olhando de fora, juntar uma coisa com a outra. Portanto, a regra universal, aquilo que seria a lei de ouro, o fundamento da nossa ética, tem no seu fulcro, dentro de si, um objeto que é justamente o que liga as intenções com as consequências. A vontade do bem com o bem. O dever de fazer com o feito. E o Lacan pergunta: que objeto é esse? Esse objeto é patológico? Sensível? Ou é transcendental, como quer o Kant?
Ele vai provar, como já no Kant, tem esse objeto patológico que faz essa ponte, e no Sade vai existir uma máxima assim: “eu tenho o direito a gozar do seu corpo como eu bem entenda e queira, e assim você pode fazer comigo também”. Ou seja, o Sade está enunciando uma regra perversa que não escapa, não pode ser restrita pelo Kant. O que vale para mim, vale para o outro – reversibilidade e universalidade dessa regra como lei geral, o puro dever. Ah é? Olha aqui o caso do Sade: eu tenho direito de usar e abusar de você, como eu bem entender, e você de mim. Isso é completamente contrário ao que o Kant queria quando escreveu e, por outro lado, isso é completamente kantiano. Você pode defender isso como um tipo de universalidade.
Para terminar aqui esse desenvolvimento sobre o objeto a, como isso vai afetar a concepção do tratamento?
No seu Seminário XI, crucial e para muitos o mais importante, um ano depois de ter sido excluído da Associação Psicanalítica Internacional, Lacan está num novo auditório e tem um novo público, devendo finalmente mostrar se é freudiano ou o que está colocando a mais além de Freud. Nesse momento ele diz que esse acréscimo à psicanálise é o objeto a.
(...) se a transferência é o que da pulsão desvia a demanda, o desejo do analista é aquilo que ali a traz de volta. E por esta via, ele isola o a, o põe a maior distância possível do I que ele, o analista, tem que tombar para ser o suporte do a separador na medida que seu desejo lhe permite, numa hipótese às avessas, encarnar, ele, o hipnotizado. (Lacan, J. (1964) O Seminário Livro XI: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 258).
Espero que isso mais ou menos dê para entender sobre o que falamos a respeito das voltas da demanda, que vão girando e compondo o circuito. Desviar a demanda da pulsão é fazer com que ela não se feche sobre si mesma. Trazer a pulsão de volta acontece porque o desejo do analista faz parte da transferência – a imagem do novo toro, o toro do Outro, formado no vazio do primeiro toro, só que com o analista, não com a mãe. Entre o toro de um e o do Outro, não há uma identificação, mas uma transferência. Muito importante isso, principalmente quando a gente pensa, hoje em dia, como vemos com facilidade as pessoas dizendo que se identificou com outra, ou com uma ideia. Muitas vezes aí o conceito de identificação está misturado com o conceito de demanda, ou com o conceito de transferência. A transferência não é identificação e é por isso que a gente cura os pacientes, porque eles criam conosco uma transferência que é uma espécie de análogo da identificação. Você acha que eu sou seu pai, tudo bem, mas eu não sou. Você acha que estou agindo como sua mãe, que estou aqui como sua tia, só que não. Você acha e vive como se eu estivesse repetindo o trauma que fez você sofrer. Isso é importante: repetir para poder elaborar e, a partir então da transferência operando no nível da pulsão, fazer um desvio na demanda, mostrar para aquele sujeito que as suas identificações são um engodo. Desfazer identificações, isso passa a ser o objetivo da análise.
Como a gente desfaz identificações? O analista “isola o objeto a, o põe a maior distância possível do I”, a idealização, a identificação. Veja que coisa estranha. Quando a gente faz análise, em geral a gente respeita o analista, acha que ele sabe muito sobre nós, está nos ajudando, tem uma relação amorosa. E com a relação amorosa vem idealização – esse cara é o lugar do futuro, por onde vou sair da enrascada em que me meti. Esses dispositivos são idealizados e, ao mesmo tempo, aquilo que destrói todas as idealizações. Quando se veste o objeto a com imagem, signo, por exemplo um barulho, um estímulo e uma voz como a hipnose – um tipo de repetição, o objeto a vestido com a imagem -, é possível encantar, mobilizar e agir sobre o outro. A análise vai bem quando a transferência se estabelece, portanto a gente tem um pé numa certa idealização, e o outro pé naquilo que representa o pior para o sujeito, pior do qual ele não consegue largar, o pior da sua alienação, esse objeto a. O que o analista faz? Ele se veste com esse objeto, vira semblante desse objeto, para separá-lo do sujeito, tirar o sujeito da identificação com esse objeto. O desejo do analista permite que, numa hipótese às avessas, ele diga para o paciente que não é ele que está hipnotizado, mas o próprio analista enquanto objeto a, enquanto isso que opera esses efeitos na transferência.
Essa travessia do plano das identificações é possível. Lacan está trazendo para a psicanálise, talvez, a teoria mais sofisticada, ambiciosa de como as análises terminam e, consequentemente, para onde as análises devem caminhar. Pode demorar anos, décadas, mas a análise termina quando isso acontece. Isso de certa forma acontece várias vezes e, portanto, a gente tem vários pontos de encerramento para uma análise. Como as voltas do toro. Novidade absoluta e maior: análise acaba. E acaba quando você deixa cair o analista em relação a os objetos de um lado e as idealizações de outro. No fundo, final de análise não é uma coisa muito gostosa de viver, do lado do analista. Porque você volta para o seu lugar de dejeto, de instrumento, para o lugar que permitiu o analisante se separar do outro.
Isso vem junto com um novo entendimento da psicanálise em relação à ciência, porque Lacan viu a ciência como comportando um tipo de objeto e capaz de alcançar e estudar um certo tipo de objeto. E o objeto a? Ele é um objeto de difícil acesso, um objeto que faz uma certa crítica do método científico. Como conhecer um objeto que é, no fundo, um fracasso de algo em se constituir como um objeto? É uma conjectura, por um lado. Pode ser, mas é fenomênico por outro, sensível por outro.
Faz parte desse momento de descoberta do objeto a o que Lacan lançou como um programa crítico para a psicanálise. Ele fez isso, já com 66 anos de idade, num momento em que funda sua escola – a Escola Francesa de Psicanálise -, num texto chamado Proposição de 9 de Outubro de 1967 sobre o psicanalista de Escola. Ali ele vai perguntar sobre o que a psicanálise tem a dizer não só como tratamento, como forma de cura da neurose, de tratamento da psicose, da perversão, mas qual a tarefa da psicanálise no mundo. O que ela tem a se meter com outras coisas? São três tarefas: a simbólica, imaginária e real.
O lugar ocupado pela ideologia edipiana para como que dispensar a sociologia, há um século, de tomar partido, como ela tivera de fazer, quanto ao valor da família existente, da família pequeno burguesa na civilização – ou seja, na sociedade veiculada pela ciência. (Lacan, J. (1967) Proposição de 9 de Outubro de 1967 sobre o psicanalista de Escola. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 260-263).
A tarefa simbólica é “o que fazer com a ideologia edipiana”. Por ideologia edipiana, a gente pode dizer que é a encarnação do Édipo em famílias positivas. Necessariamente com pai, mãe, filho, onde a hostilidade se dá do pai com o filho, onde a mãe tem um lugar, o pai tem outro, a mãe é objeto, ou seja: qual a diferença entre a estrutura do mito e a narrativa do mito? A estrutura do mito, que tem a ver com “tem um que não pode”, tem a ver com a proibição do incesto, com a introdução ao sujeito da lógica da diferença. Tem a ver com a incorporação dessa lógica da diferença com uma estrutura lógica que é a das famílias, o sistema das famílias, mas não e nunca com um tipo de família específico. A psicanálise se apoia numa espécie de crise de um tipo de família para nascer – a família burguesa patriarcal -, mas que ela teria que superar isso. Ela também é crítica desse modelo como modelo formativo da autoridade no sujeito.
(...) ao se lhe acrescentar sua função, na igreja e no Exército, do sujeito suposto saber. A nos atermos ao modelo freudiano, aparece de maneira flagrante o favorecimento que dele recebem as identificações imaginárias (...) seu traçado para o próprio Édipo definindo a função do Pai ideal. (Lacan, J. (1967) Proposição de 9 de Outubro de 1967 sobre o psicanalista de Escola. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 260-263).
Segunda tarefa, ela tem que fazer frente à lógica das identificações. As identificações imaginárias. E aqui é principalmente como que a gente vai lidar com funcionamentos psíquicos que são demissionários em relação à nossa condição de sujeito. Por exemplo: funcionamentos em álibi – “eu não tenho nada a ver com esse mundo, isso estava aí antes de eu chegar, não me comprometo”. Funcionamentos em massa – “eu sou do time do Palmeiras, o que disserem para eu fazer eu faço, não preciso pensar”. É simplesmente me conduzir por identificação com essa massa. Funcionamento de alienação, como a gente viu, a neurose é uma alienação desse tipo, alienação à demanda do outro – modos de produção, de trabalhar, alienação em relação a modos de desejar, de gozo. Tudo isso são identificações imaginárias que a psicanálise haveria de confrontar. Portanto, vocês estão vendo que a psicanálise é um dispositivo crítico, não é só um método de tratamento. Crítico do sistema das famílias, das identificações – de massa, de grupo, das alienações do sujeito.
Nosso futuro de mercados comuns encontrará seu equilíbrio numa ampliação cada vez mais dura dos processos de segregação. (Lacan, J. (1967) Proposição de 9 de Outubro de 1967 sobre o psicanalista de Escola. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 260-263).
Em terceiro nível, que tem a ver com o objeto a. Lacan foi profético e, de fato, a gente começou a perceber como lidamos mal, como não conseguimos debelar muito bem todas as variantes de segregação. Segregação de raça, gênero, etnia, de forma de gozo – essa vai ser a hipótese de Lacan. A segregação é basicamente uma intolerância fantasmática ao gozo do outro. Tem que ser o seu gozo, o seu objeto a, porque o objeto a do outro perturba sua relação com o seu objeto a. Então você acha que “não pode andar na Paulista de mão dada, porque não é assim que se goza”, porque esse gozo do outro com outro objeto afeta o seu prazer com o seu objeto. Então o que você faz? Coloca o outro em outro país, na periferia, bem distante, se constrói um condomínio, dá-se um jeito de segregar, porque o outro perturba sua economia de gozo. Você identifica o outro como objeto a. Daí você já viu, o objeto a é aquilo que causa o nosso desejo, mas que quando nos aproximamos, ele causa angústia e mais, causa nosso horror, o pior. O pior de cada um está no objeto a, principalmente quando ele não está analisado, quando o sujeito desconhece, quando ele está alienado no objeto a, então aí ele está altamente exposto aos gozos alheios. O vizinho que cozinha aquela coisa, aquele cheiro – objeto a se infiltrando por baixo da porta. Aquelas pessoas que gostam daquela música alta estão ali fazendo o quê? Gozando. E eu? De fora. Como estou de fora, me sinto segregado, portanto, vou lá e segrego, faço atos de violência. Acho que não preciso me estender nos exemplos aqui de como a segregação é a questão política, ética, fundamental para nós e que faz parte da posição da psicanálise no mundo e métier de tratamento. Negacionismo, violência de gênero, de raça.