Para Entender Lacan | Parte 2
Por Christian Dunker
Aviso: este material é uma transcrição do curso “Para Entender Lacan”, realizado pela Casa do Saber e pelo professor Christian Dunker em julho de 2021. Por se tratar de uma transcrição, as frases não seguem necessariamente uma ordem ou linha de raciocínio semelhante ao de um texto escrito.
Do Eu ao Outro
No nosso encontro de hoje vamos analisar um segundo momento da obra do Lacan, que vai de 1953 a 1966 e que é um momento conhecido como um retorno a Freud. Aqui vocês têm uma charge do chamado “banquete estruturalista”, reunião do Georges Dumezil, estudioso da história das religiões, Jacques Lacan, Claude Lévi-Strauss, grande antropólogo que esteve no Brasil fazendo suas pesquisas, morreu recentemente, organizador do museu do homem em Paris; e Roland Barthes, crítico literário e também escritor. Eles estão num banquete no meio da selva, da floresta, e isso já diz algumas coisas para nós de como o pensamento estruturalista vai tentar promover um novo entendimento do que são as chamadas ciências humanas.
Até então, até os anos 1950, ciências humanas estavam muito ligadas ao campo de estudo das letras, da filosofia, em que a gente fazia análises quantitativas no plano da sociologia. Também a antropologia trabalhava muito com métodos comparativos. A partir do Lévi-Strauss, um antropólogo, portanto, essa situação vai mudar completamente, porque ele vai olhar para esse método que, mais ou menos assistematicamente, analisava e comparava as diferentes culturas, e afirmou que era possível recorrer a uma fundamentação geral das ciências humanas. O que se está fazendo quando se estuda uma sociedade, religião, economia, poesia, mitos e ritos? Lévi-Strauss teve essa intuição de que se está estudando linguagem: toda cultura tem estrutura de linguagem. Todos os sistemas simbólicos têm estrutura de linguagem.
Lacan leu isso, tomou contato com as obras primeiras de Lévi-Strauss – como, por exemplo, A Estrutura dos Mitos, O Feiticeiro e Sua Magia, As Estruturas Elementares de Parentesco – e chegou então a uma nova etapa de proposições sobre a psicanálise, tanto do ponto de vista da clínica psicanalítica, quanto do ponto de vista de sua fundamentação. Já antes Lacan procurava o que era a lógica do reconhecimento, como ela envolve o coletivo, o tempo, certa teoria da autoridade e da lei, de como ela envolve estruturas elementares de reconhecimento, como a nossa ligação com a imagem do corpo próprio. Tudo isso tem uma estrutura dialética, portanto, de conflito e contradição.
Até aqui, e falando francamente, Lacan tinha certa suspeita com o inconsciente. Ele gostava mais do conceito de pulsão, que traduziu com a noção de complexo, de imago, de tendência, como uma espécie de noção mais materialista do que é a noção do inconsciente. Para ele, inconsciente ainda tinha traços daquilo que ele queria criticar na sua teoria da personalidade, que era a metafísica. A metafísica enquanto esse setor de investigação filosófica que coloca como suas questões centrais Deus, a alma e o mundo. Kant dizia que estas questões não são para conhecermos – ninguém pode conhecer propriamente isso. O que podemos conhecer são objetos, fenômenos. Estas ideias têm uma função reguladora, servem para exercitarmos nossa liberdade, a liberdade da razão, mas não são propriamente objetos de conhecimento. Lacan olhava para a psicanálise e se perguntava onde havia coisas que cheiravam à metafísica? O inconsciente.
É só a partir de 1953, quando leu a obra de Lévi-Strauss (que, por sua vez, afirma que as estruturas simbólicas são estruturas de linguagem) que acredita poder incorporar o inconsciente como um conceito aceitável, já que para ele o inconsciente será estruturado como uma linguagem. Isso é uma revolução prática, porque nos faz olhar para a situação de tratamento como uma situação de fala. Apesar de Anna O. ter disso que a psicanálise é uma “cura pela palavra”, os psicanalistas tinham se esquecido um pouco disso, ficando mais preocupados com uma psicologia do desenvolvimento, com os problemas legados pelo Freud, o supereu, como atravessá-lo na clínica, se o Complexo de Édipo é universal ou não... O fato mais óbvio, que a gente vai a uma análise, fala e é escutado, não tinha sido captado pelos esforços de fundamentação e justificação pública da psicanálise. É o que Lacan fez, declarando um programa de pesquisa:
Seus meios [da psicanálise] são os da fala, na medida em que ela confere um sentido às funções do indivíduo: seu campo é o do discurso concreto, como campo da realidade transindividual do sujeito: suas operações são as da história no que ela constitui a emergência da verdade no real. (Lacan, J. (1953) Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 259).
Lacan estava ligando a fala e indivíduo. Por quê? O modelo de linguagem que ele vai ter e que vai trazer para a psicanálise por meio de Lévi-Strauss passou por, em primeiro lugar, um teórico da linguística russa, chamado Roman Jakobson; em segundo lugar, por aquele que vai ser, a partir desse momento, considerado o fundador da nova linguística, aquele que conseguiu tornar a linguística uma ciência, separá-la da etimologia comparativa: Ferdinand de Saussure, suíço, que foi compilado por seus alunos em um livro publicado 1916 chamado Curso de Linguística Geral. Saussure dizia que para estudar a linguagem e torná-la acessível para uma pesquisa era necessário começar com alguns recortes metodológicos. Vamos imaginar que a linguagem se divide em um aspecto coletivo (que é cultural, composto por um conjunto de regras impessoais), que é a língua; do outro lado, a apropriação individual da língua por aquele que fala, ou seja, a fala. Língua e fala compõem as duas faces de uma mesma superfície – uma folha de papel. Imaginem a linguagem como uma folha de papel: de um lado a língua, do outro a fala. Quando falamos, recortamos o papel, fazemos linhas nele que usa, ao mesmo tempo, o lado individual (eu que falo) e o coletivo. Para poder falar português, tenho de obedecer a essas regras, senão é outra língua. Porém, eu falo essa língua de maneira única, escolhendo a cada momento se vou colocar artigo ou verbo, mas não posso escolher se coloco cinco artigos e dois substantivos juntos, ou se vou trabalhar com palavras que não pertencem àquele código. Vejam só: a língua me sobredetermina, determina o que posso ou não falar para pertencer a esse coletivo.
Saussure ia além: o objeto da linguística só pode ser a língua, pois é o único objeto estável. A fala varia muito entre cada pessoa, sem ser possível estudá-la cientificamente. A linguística estuda a língua e existiria outra ciência porvir – a semiologia – que estudaria tudo (as línguas e o campo da linguagem), as regras das regras. Todas as línguas têm em comum o fato de pertencerem à linguagem. Quais as regras mais amplas da linguagem? A semiologia vai estudar isso. Por isso, quando diz que “seus meios são os da fala... que confere um sentido às funções do indivíduo”, quer dizer que a fala é a língua assumida por um indivíduo. Essa definição de um discípulo de Saussure chamado [Émile] Benveniste, que Lacan adorava, lia, seguia, um autor que pensa a linguística de forma dialética. Aqui a gente está avançando além da dialética para a estrutura. Vamos continuar.
“Seu campo é o do discurso concreto” – tem a função e o campo, e esse campo é o concreto como campo da realidade transindividual. Muito importante. Porque até ali a psicanálise sofria várias críticas. Por exemplo, [Mikhail] Bakhtin, um autor da teoria dos discursos, russo, que dizia que a psicanálise era individualista, meio burguesa, porque cada um tem seu inconsciente, vai de um em um no analista e daí fala num contexto privado. O privado, individual, só aquele que está ali falando. Cadê a cultura? O Lacan pega esse tipo de crítica e rebate, falando sobre o como se entendia o inconsciente de maneira equivocada. Na verdade, todas as regras que Freud descreveu quando descreveu as leis do inconsciente são regras, no fundo, de linguagem. Freud, que escreveu, aliás, contemporâneo de Saussure, era um tipo de linguista sem saber que fazia linguística, e o inconsciente, por sua vez, corresponde ao campo da realidade transindividual. Por quê? Quando pergunto a vocês: a linguagem é individual ou coletiva? As duas coisas. “Transindividual” – não existe fala se não tiver do outro lado um outro para quem eu dirija essa fala, de onde minha fala ganha sentido, para onde eu endereço a minha fala, ou seja, ele está observando que a experiência da fala não é individual como parece (porque a pessoa vai individualmente ao lugar e fala), porque ela fala com o outro.
“Campo da realidade transindividual do sujeito”, olha como ele mudou. Foi do indivíduo para a fala, da fala para o sujeito da realidade transindividual. Voltando à nossa discussão de que ele está criticando o indivíduo, a “egologia”, “egolatria”, e substituindo isso por uma noção que é transindividual, a noção de sujeito. “Suas operações são as da história, no que ela constitui a emergência da verdade no real”: aqui a gente vê o Lacan combinando o inconsciente com a linguagem, inconsciente tem estrutura de linguagem, portanto ele tem, por um lado, estrutura de língua e, por outro, estrutura de fala. São dois lados dessa mesma estrutura. Mas as suas operações ocorrem no tempo, no tempo diacrônico, no tempo concreto do discurso, em que eu falo, depois falo de novo, daí eu vou na próxima sessão e falo de novo, e isso vai constituindo uma história.
A análise é um processo histórico pelo qual aquela história recupera, mimetiza e concentra a história inteira da vida do sujeito. Por isso a gente consegue transformar alguém, porque a gente transforma a maneira como essa pessoa fala de si, como ela se historiciza, como ela se coloca no tempo. No que ela constitui, e essa a parte mais difícil dessa passagem, “a emergência da verdade no real”. Alguém que se mete a fazer a crítica da metafísica, que quer aproximar a psicanálise da ciência, das ciências da linguagem (agora esse é nosso fundamento), vem falar em verdade? Verdade é, em regra, uma questão metafísica, ainda mais quando a gente fala de “verdade no real” – o que é isso, teologia? “A verdade vos libertará”. A verdade é um conceito que Lacan está querendo recuperar, trazer de volta para o debate. Por quê? Se a gente pensar estritamente no que é o procedimento científico – e a gente viu isso na aula passada com Descartes -, ele, para se fundar enquanto tal, uma ciência (“Penso, logo existo” e isso que é a primeira evidência, primeira verdade), preciso esquecer desse momento. Esse momento fulgurante da primeira verdade já foi feito. A partir de então, diz Foucault comentando esse processo, a verdade perdeu a sua potência ética – a gente pode descobrir muitas coisas que são, no fundo, saberes sempre renováveis.
A verdade é só uma posição nessa renovação. Esta verdade, sobre como funciona a natureza, o cosmos, inclusive a sociedade, os animais, nossos corpos, não nos muda ou transforma. Lacan está muito atento a isso, porque ele está lendo outro pensador contemporâneo dele chamado Martin Heidegger, que fez uma crítica da ciência. Heidegger dizia que a ciência moderna se formou deixando rastros para trás. Por exemplo: sujeito dividido, sujeito que só existe quando ele bem se enuncia. Por exemplo, a verdade. Ela perdeu sua potência ética, transformativa e vai sendo deflacionada, se tornando cada vez mais objeto de uma crença. Sua verdade, a minha verdade, ou dessa comunidade, do que cada um pensa... Ela vai se enfraquecendo. Lacan vai dizer: não. A psicanálise, enquanto herdeira desses escombros da modernidade, ela vai resgatar a experiência da verdade, ainda que seja exatamente como Descartes fez, a verdade no tempo. A verdade da descoberta. A verdade que aparece naquele momento de iluminação de uma interpretação. Naquele momento em que a gente tem um insight e diz “puxa, é isso, entendi, dei mais um passo na apreensão e na conclusão sobre meu desejo, sobre minha condição de sujeito”. Daí a pessoa sai toda contente da sessão, chega na próxima e começa a dar uma aula sobre si. E o analista diz: agora não tem mais verdade nenhuma, isso virou mero saber, um saber no qual inclusive a pessoa pode se alienar para não saber mais nada sobre seu desejo inconsciente.
Lacan está lendo Heidegger e vai vir com essa ideia, de que a verdade é alétheia – a prefixo de negação, lethe é “letárgico”, quer dizer “esquecimento”. Verdade, portanto, vem do “desesquecimento”, por isso as operações são as operações da história, porque a verdade tem a ver com esquecer e lembrar. Com esquecer, encobrir e desvelar, aparecer. Veja, num instante, naquele momento, naquele tempo. Emergência da verdade no real – e aqui a cobra vai fumar, porque ele não só recuperou um conceito moderno (verdade), como está vindo com outra noção muito difícil de aceitar, que é o real. Do que nós estamos falando quando falamos de “real”? São as coisas mesmas? É o mundo tal como ele se apresenta? Coleção de objetos? O que é o real? Isso inquieta muito Lacan e ele vai dizer: quando o inconsciente aparece, ele traz a “emergência da verdade no real”. Emergência da verdade, do desejo. A verdade do desejo que tem uma história, que foi desejado, negado, excluído e daí ele volta: “opa, verdade”. Mas essa verdade emerge no real. Qual é o real que ele está falando aqui? São três: o real do sujeito, do objeto e da estrutura. Vamos falar um pouco mais sobre isso.
Ele está, então, começando, na verdade, desdobrando aqui sua tríade tão famosa. Ele, no começo, estudou imaginário (como o Eu se forma pela captação da imagem do semelhante – por alienação, portanto). Agora ele está às voltas com “tem o imaginário e tem o simbólico, porque agora posso definir o simbólico como linguagem”. O que acontece no ser humano? Qual o real da experiência humana que, no casamento do imaginário com o simbólico, ainda assim tem um resto? Ou seja, o resto que é não “imaginarizável” (não consigo pôr em imagem e eu também não consigo pôr em linguagem). Aí é metafísica confessa, vai começar a falar em anjos, em coisas extraterrenas, como assim algo que não podemos falar ou dar imagem?
E se o real for justamente aquilo que é impossível de ser pensado? E se o real é justamente aquilo que escapa à nossa representação? E se o real for algo maior do que o inconsciente e o sujeito? Hipótese muito interessante, porque ela vai permitir que a gente reabilite uma maneira mais materialista, a noção freudiana de pulsão. O que é a pulsão? Esse impulso para o prazer, para a satisfação? Isso já é a pulsão “imaginarizada”. Então é a pulsão de dizer, de lembrar, de autoconservação... Isso é a pulsão simbólica. E a pulsão ela mesma? Ela se define pela repetição? Esse é o primeiro adjetivo do real: o real tem estrutura de repetição. Assim como a verdade tem estrutura de ficção. Não é a verdade no sentido intuitivo, é a verdade que, por exemplo, podemos extrair de um ato poético, que joga com a verdade, é um ato de consequência, mas dentro daquela estrutura, não em todas as estruturas, no mundo, mas naquela estrutura de ficção.
Nossa verdade, a verdade do desejo, tem necessariamente estrutura de “como se”, a gente fala disso no “como se” e não no ostensivo (“aqui está, pode olhar que estou apontando para isso”). Do outro lado, o real insiste. Não como positividade, mas como fracasso. O real bate a porta, como se alguém batesse à porta e dissesse “se tem alguém batendo à porta, tem alguém do outro lado”. Não, pode ser que só tenha a batida, que insiste e se repete. É disso que a gente sofre, ou é assim que a gente sofre. “Minha vida parece um filme que não para de sair de cartaz e sempre termina mal”: um romance, dois, três, todos iguais. O que é isso? Demoníaco? Não. O que tem aí? Só repetição que não se consegue fixar, entender quais são as razões dessa repetição. Porque ela se impõe como uma espécie de destino. Aí está o real. O real, diz Lacan, é aquilo que volta sempre ao mesmo lugar. Aí ele está tirando essa observação dos astrônomos, do Kepler, Copérnico, que ficavam observando estrelas que voltavam ao mesmo lugar sem entenderem por que isso acontecia, mas sabiam que acontecia. Antes de Kepler descobrir as órbitas, descrever por que elas são elípticas, havia ali um efeito que qualquer pessoa diria “é misterioso”. Efeito observável pela repetição. O que isso tem a ver com psicanálise?
Vou dar um exemplo direto: você recebe uma pessoa e é um mundo que chega no seu consultório, e você diz para ela uma coisa que poucos encaram: diga-me tudo que lhe ocorrer sem restrição, juízo, vergonha, ponderação, fale livremente, associe livremente. Olha que incrível! Olha que paraíso literário, você pode falar qualquer coisa. Qualquer coisa que já foi, que virá, que ainda não é, qualquer coisa que as línguas, inclusive, puseram como nós como um repositório de saber na experiência humana. Daí o que a pessoa faz? “É o seguinte: tem meu pai, meu tio e minha mãe, e ele enche o saco, ela faz assim, e aquele eu também não gosto”. Bom, legal, começou a história. Segunda sessão: “Deixe te contar uma coisa, tem meu pai, meu tio e depois minha mãe”. Ah, tá, legal, bacana, deve ter uma relação esses três, vamos falar mais. Terceira sessão: “Sabe o que é, doutor, tem meu pai, meu tio e mamãe”. O que acontece que a gente oferece o mundo para a pessoa e ela se curva, se concentra, se fecha em repetir, repetir e repetir? Ela é pouco criativa? Não, muitas vezes são pessoas extremamente criativas, mas a linguagem e o inconsciente, quanto mais neurótico, mais fechada é a repetição. Quanto mais neurótico, menos a pessoa percebe que está se repetindo. Ou seja, que ela só fala isso para quem quer que seja o seu outro. Ela fala isso no trabalho, no amor, na cama, com os filhos, ela só fala “papai, titio, mamãe” – claro, se você decifrar simbolicamente, se você perceber que há certas substituições simbólicas, porque ela não percebe. Daí a estrutura, daí o desafio da estrutura que é como fazer com que aquele sujeito dê consequência, se responsabilize, escute a emergência da sua verdade no seu real. Do seu inconsciente na sua pulsão. Tudo bem? Vamos em frente.
A coisa vai se aprofundar, porque Lacan vai querer trocar isso em figurinhas mais exatas e mais precisas. Ele vai dizer que há duas figuras maiores do inconsciente, uma são nossos sintomas e a outra são nossos desejos. Os sintomas têm uma estrutura de linguagem, mas qual? De metáfora. O sintoma é uma metáfora. E o desejo? O desejo é uma metonímia:
A estrutura metonímica, indicando que é a conexão do significante com o significante que permite a elisão mediante a qual o significante instala a falta do ser na relação ao objeto, servindo do valor de envio da significação para investi-lo com desejo visando esta falta que ele sustenta (...) A estrutura metafórica, que indica que é na substituição do significante pelo significante que se produz um efeito de significação que é de poesia ou criação, ou em outras palavras, do advento da significação como questão. (Lacan, J. (1957) A Instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 519).
Lacan gostava de frases em que você tem que, literalmente, decifrar. Não é linguagem dizer “não tem pão na geladeira”, ou “A leva a B, que leva a C e segura minha mão que estamos num caminho feliz da cartilha da psicanálise”, não. Ele escrevia assim propositalmente, dizia isso, porque se vocês não são capazes de enfrentar as ranhuras da linguagem, de quebrar a cabeça com a produção do sentido, o que vocês vão fazer com o paciente de vocês? Vão escutar que não tem pão na geladeira. Vamos lá.
Primeiro passo é pensar que as figuras de linguagem, essas mesmas que vocês aprenderam na escola, de o todo pela parte, a parte pelo todo, a pessoa pela obra, o continente pelo conteúdo, essa estrutura, ou seja, ela aparece na coordenação daquele que é o elemento mínimo da linguagem para o Saussure, e que o Lacan vai trazer para a psicanálise – chama-se “significante”. Definição de significante é “a imagem acústica da palavra”. E a definição de significado é o conceito. Então, por exemplo, se eu digo “mesa”, “Tisch”, “table”, “table”, eu variei o significante (em português, alemão, francês, inglês), mas o significado é o mesmo em todos eles, estou falando do mesmo conceito.
Para Freud (e para muitos de seus leitores), o inconsciente estaria mais do lado do significado, do conceito. Lacan vai inverter isso a partir de Lévi-Strauss e dizer que as trocas transindividuais que o inconsciente propõe são operações significantes, que posso escrever, inclusive, em fórmula:
f(S ...S') = S(-s)
Dentro da fala e da língua vamos encontrar significante e significado. Juntos, de novo, folha de papel: de um lado significante, do outro lado significado. Juntos eles formam a unidade elementar da linguagem, que é o signo. Signo tem significante (“Tisch”, “table”), significado (“mesa”). Lacan diz que “o inconsciente se estrutura como uma linguagem e uma linguagem se estrutura fundamentalmente pelo significante, não pelo significado”. Não é o que eu estou querendo dizer, independente da forma com que eu digo; o inconsciente está na forma como eu digo. Olha só, incrível a reviravolta, porque então o inconsciente, primeiro, não é mais uma coisa que está na cabeça do indivíduo, mas no espaço entre pessoas falantes. Segundo lugar, ele não vai ser mais um conteúdo, cenas infantis, podem ser traumáticas, mas isso não é o inconsciente. O inconsciente é uma articulação significante. Conexão de significante com significante. “Trinta velas no horizonte” significam “trinta navios”. Mas eu falei “velas”! Quando se fala em velas (S), você está subsumindo, conectando dentro de si “navios”. Não houve criação de um novo sentido. As trinta velas são quase sinônimos de trinta navios, um pelo outro, que permite a elisão (deixar de fora a palavra “navio” – eu não falo “trinta velas, ou seja, trinta navios”, apenas “trinta velas” e você entende os navios, eles estão presentes em elisão, representados na sua ausência).
“Mediante a qual o significante instala” - traz primeiro Saussure e depois Heidegger - “a falta de ser na relação ao objeto”, e aqui qual a ideia? Na relação do sujeito com o seu desejo vão aparecer objetos (aquela bolsa da Louis Vuitton, o álbum do Pink Floyd). Não, você está enganado, você está desejando o significante, porque é o significante que representa o desejo do outro. E o objeto, o que faz o objeto nessa história? Ele conta, não conta? O objeto é necessário, vem junto com a experiência da falta em ser. A gente experimenta uma relação de esquecimento do ser, a gente experimenta no nosso cotidiano uma relação de alienação aos entes, a gente se trata como objetos que consomem outros objetos, damos primazia aos objetos na determinação do nosso desejo. Apareceu aquela coisa nova, vamos lá pegar. Depois que você pega o que acontece? Decepção, falta, frustração. O objeto, menos do que uma fonte de satisfação, vai ser lido pelo Lacan como a chave de um ser do sujeito que é incompleto, insuficiente, que é falta. E é porque o âmago do sujeito é falta – quer definir alguém, não pergunte se os cabelos, se os estudos, se o dinheiro; pergunte o que falta a essa pessoa, e a hora que ela consegue lhe dizer, aí você entende quem é esse sujeito. Ele pode estar repleto de coisas em volta, cheio de objetos – enquanto não descobrir onde está a falta, nada sobre o desejo, porque o desejo se move, ele se estrutura, em relação à falta. Inclusive, quando eu desejo o outro, eu desejo estar no lugar daquilo que falta para o outro. Ou seja, eu desejo ser objeto para a falta do outro, e quando eu desejo, eu desejo que o outro apareça como objeto que se sutura, que encobre, que completa esta falta. Só que o que se dá? Um deseja o outro, o outro deseja o um, daí vão pra cama e o que acontece? Nada, continua a haver falta em ser. Aliás, depois que vão pra cama, costuma aumentar a falta em ser, e não diminuir, e esse aumento da falta em ser que causa uma outra coisa chamada amor.
“Servindo do valor de envio da significação para investi-lo com desejo”, aqui ele está usando duas outras noções da linguística, os significantes se juntam uns com os outros por causa de um valor que tem a ver com oposições fonêmicas de cada língua. Por exemplo, em português, P e B são valores diferentes. “Pato” e “Gato”, P e G são valores diferentes que definem significações distintas. Ou significados diferentes: “pato” e “gato” – mudei o valor, mudou o significado, mudou o significado, alterou-se o conjunto da significação, que é o lugar que aquele significado ocupa em relação às outras partes da frase, da oração. O significado se aplica a um significante, a significação se aplica a um grupo de significantes, a um enxame de significantes. “Vovô viu a uva”, aqui tem uma frase, se você começar a alterar (como alguns maliciosos fazem) os valores de algumas oposições fonêmicas, você altera completamente o sentido da frase.
“Investi-lo de desejo visando esta falta que ele sustenta”. Ele, o desejo, sustenta a falta, olha que bonito. Quanto mais a gente deseja, mais a gente consegue se manter em falta. E aquele que não consegue se manter em falta? Bom, ele vai fazer outras coisas, vai amar, vai gozar, mas desejar precisa desta habilidade, desta sustentação, como ele está dizendo, da falta.
“A estrutura metafórica, que indica que é na substituição do significante pelo significante que se produz um efeito de significação”. Olha, aqui já mudou a nossa escrita, é a segunda imagem aqui:
Apareceram barras. Essa é a fórmula da metáfora paterna, como Lacan lê o Complexo de Édipo em Freud. O primeiro par representa a relação do pai (S) com a demanda da mãe ($’); o segundo par representa a demanda da mãe em relação ao filho (x). Olha que bacana. Quando aparece uma criança, aparece um novo significado numa relação, que a gente pode descrever assim: o pai está para a mãe de tal maneira como a mãe está para a criança. Isso pode ou não produzir uma substituição que vai gerar uma metáfora. Essa metáfora do sujeito, da formação de um primeiro sintoma, onde a gente vai ter um significante (S) fora, a formação de um ideal, uma imagem (I) e, embaixo, um novo significado (s). Vamos ver isso na escrita do Lacan.
Na fórmula da metonímia temos (-s): não há significação nova. Na fórmula da metáfora isso acontece, o que esclarece um enigma interessante: a linguagem é um sistema onde cada elemento tem um valor e uma significação determinadas pela sua posição em relação a todos os outros elementos daquela língua. A gente viu isso no caso do valor e da significação, mas, pergunta: então de onde vêm os novos significados? De onde vêm as novas significações? Como é possível a poesia? Como são possíveis os neologismos? Porque a língua comporta efeitos de metaforização. E esses efeitos são então aqui descritos como “que é de poesia ou criação, ou em outras palavras, do advento da significação como questão”. “Questão” aqui tem um valor de conceito. O que define uma estrutura clínica não é se a pessoa está mais em contato com a realidade, menos em contato com a realidade, se ela sofre mais ou menos; o que define uma estrutura clínica é uma questão, uma espécie de pergunta, ou de metapergunta.
A questão, por exemplo, a histeria tem uma questão com a outra mulher. Uma questão que é organizativa para esta forma de desejo. O que quer essa outra mulher? O que ela está fazendo na minha vida? Por que eu só consigo desejar se tiver uma outra mulher na área? Por que eu só consigo me sentir desejada se outra mulher foi não escolhida. Por que meu desejo vem junto com outra mulher? Lacan vai dizer que é porque isso é um fato de estrutura, tem a ver com os sintomas que você produz, com o tipo específico de sintoma. Isso ele notou nas pacientes histéricas do Freud. Por exemplo, a paciente Elisabeth Von R., que não consegue Aufstieg, levantar-se, ela sofre de uma astasia vazia, um tipo de paralisia em que ela fica sentada e não tem nada de errado no seu equipamento neurológico, nas pernas, mas ela não consegue se levantar. Freud vai escutando ela e descobre que, bom, a origem desse sintoma foi o momento em que ela tinha perdido a irmã, a irmã tinha morrido, e tinha o cunhado, muito bonitão. Ela já tinha notado que o cunhado era bem bonito e já tinha ensaiado uma outra coisa sobre ele, mas o pai estava doente, tudo meio complicado, a irmã doente também, então ela afastou essa ideia. Quando então o pai morreu, ela foi sentar com o cunhado numa pedra, os dois muito tristes, em luto, e daí eles têm uma conversa romântica. A pedra foi esquentando e aquilo, de repente, apareceu para Elisabeth como uma traição inaceitável. Ela casando com o marido da irmã, como foi possível desejar isso? Não dá para aguentar um pensamento desse tipo, então a saída foi expulsar, negar. Esse pensamento foi para fora e ele se converteu em algo que incide sobre o corpo, que é: a partir de agora, minha cara, na hora que você vai levantar-se, seja de uma cadeira ou de uma pedra, você não consegue mais.
Olha que interessante, porque aqui nesse sintoma (sintoma clássico, sintoma de histeria de conversão) existe um desejo, o desejo de permanecer sentada naquele pôr do sol conversando com o cunhado de uma forma romântica, com devaneios que apareceram naquela hora e que ela guarda simbolicamente no seu corpo. Mas ela esqueceu. A cena foi completamente esquecida. A relação que ela tem é simplesmente com uma insuficiência, o corpo dela não responde, ela não levanta. Ela não levanta, diz Freud. Aufstieg tem uma conotação em alemão (em português também) que pode ser escutada como uma metáfora. Ela não levanta. O quê? O quê de quem? Estão ali as ideias em estado de metáfora. Ela fez uma metáfora com o seu corpo. O seu corpo, no seu corpo tem um dizer, uma palavra amordaçada, que ela sabe que é uma palavra, mas não sabe o que significa, uma palavra que é um símbolo mnêmico, um símbolo de sua história de desejos e que aparece para ela como um oráculo, um enigma, e que no fundo Aufstieg é o seu desejo. É o seu desejo negado, recalcado. Isso é uma revolução científica, se vocês quiserem estética, uma verdadeira descoberta de que o inconsciente funciona desse jeito tão simples. É. Toda vez é isso, metáfora e metonímia. Puxa! Então não tem astros? Não, mas daí a gente vai fazer a pergunta: o que é a poesia? O que é a linguagem? Como a gente usa esse negócio?
Consequências para o tratamento. O que isso quer dizer e o que isso implica para como devemos dirigir a cura? Texto mais lido do Lacan sobre o tratamento – ele agora tem 57 anos e escreve “Direção da cura e os princípios de seu poder”. Acho isso fantástico porque ele vai olhar para a ação analítica e vai dizer “aqui tem um poder, cadê o poder? É o analista que manda, o paciente, qual a estrutura de poder nesse negócio?” E aí, duas passagens desse texto:
Que o analista é ainda menos livre naquilo que domina sua estratégia e a tática, ou seja, em sua política, onde ele faria melhor situando-se em sua falta-em-ser do que em seu ser. (Lacan, J. (1958). Direção da cura e os princípios de seu poder. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 204).
Várias coisas aqui. A primeira é que a nossa ação, enquanto escutadores, terapeutas, ela tem que ser dividida em três andares
O primeiro é a ação política (para onde vamos? Vamos para o desejo a partir do desejo do analista, desejo de que a análise aconteça. Vamos na direção do desejo porque esta é o que funda a ética da psicanálise. E a psicanálise não é só uma prática que tem uma ética, ela é uma ética do desejo. Por isso a gente pode voltar a falar em verdade, em verdade do desejo. É isso que a gente quer. Do que é feita essa verdade para cada um? Então, nesse nível, o grau de liberdade do analista é pequeno, tipo assim, se você trair isso, você está fazendo outra coisa (vendendo pipoca, jogando palitinho). É zero ou um: ou tem direção da cura e desejo de levar aquele sujeito mais próximo de seu desejo, ou “ops”. Vai dizer “eu quero tão bem o meu paciente, quero tudo de bom para ele” – ótimo, só que isso não é levá-lo para o seu desejo, é levá-lo para o seu bem. Ninguém falou em bem e mal aqui, desejo é desejo e ele pode ser trágico, como a gente vai ver.
Em segundo lugar tem a estratégia. A estratégia é como você interpreta uma certa repetição, a relação mais ou menos estável que existe entre analisante e analista, chamada transferência. Você pode falar mais, menos, ser mais ou menos humorado, pode cortar a sessão mais curta ou mais longa, pode insistir em uma palavra ou outra, um caminho ou outro. Vai mudando a estratégia e a condição é que a estratégia tem a ver com a transferência. Se você não obedece a transferência, se você fala fora da transferência, errou, porque você está se orientando sem estratégia.
Finalmente, tem o nível tático, o nível da mais absoluta invenção. “que o analista é ainda menos livre naquilo que domina sua estratégia e sua tática”, ou seja, a estratégia domina a tática e a política domina a estratégia. E na tática ele diz “o analista deve se sentir o mais livre que conseguir”, ou seja, isso aqui é uma reviravolta em como se fazia psicanálise nos anos 1960, que era como? Não pode ter roupa diferente, sempre a mesma roupa, não pode ter nenhum contato com o paciente, assepsia total, neutralidade total e padronização de comportamento. Todo analista diz assim, diz assado, faz assim e assado. Se você tem o domínio ético de para onde você vai, é seu dever inventar a tática que for mais adequada para aquele paciente. Se aquele paciente exige que você ande com ele pela rua, você anda. Se para chegar naquele paciente você precisa falar chinês, aprenda chinês. Se você precisa plantar bananeira, plante bananeira – faça, do ponto de vista tático, aquilo que sua criatividade poética, literária, sua capacidade de ser palhaço, humorado, erudito, dê o melhor do ponto de vista tático. Compreenda, no entanto: a tática tem de estar a serviço da tática, que deve estar, por sua vez, a serviço da política.
numa direção do tratamento que se ordena, como acabo de demonstrar, segundo um processo que vai da retificação das relações do sujeito com o real, ao desenvolvimento da transferência, e depois, à interpretação, que se situa o horizonte em que para Freud se revelaram as descobertas fundamentais. (Lacan, J. (1958). Direção da cura e os princípios de seu poder. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 204).
Aqui vocês têm um pouco de como Lacan tratava os assuntos de técnica, com alguns conceitos pesados e com muita liberdade, conferindo muita liberdade para o fazer do psicanalista. Você vê o paciente em análise, primeira coisa que ele diz: “Estou inadequado, a mais, a menos, não estou certo na realidade em que vivo” – retificação das relações do sujeito com o real. “Escuta, você está é muito adaptado à sua realidade, você criou essa realidade, você está se queixando de uma realidade que, no fundo, satisfaz, em alguma medida, seu sintoma”. Então, alô alô, vamos mudar a posição com a realidade, porque é esse discurso que, em regra, pacientes neuróticos têm em relação ao seu sofrimento.
Segundo ponto, quando você faz isso, quando você pergunta para o paciente qual é a parte que lhe cabe desse latifúndio, muitas vezes você é acusado de culpar o paciente. Absolutamente: culpa e responsabilidade são diferentes. A pergunta é: como você e em que medida você concorre para produzir, manter, sustentar a realidade da qual você se queixa? “Eu não estou fazendo nada e a realidade está...” Não, essa não tem. A gente sofre, tem coisas que a gente sofre sem poder comandar, sem poder determinar, que caem sobre nós, mas o que você fez com o que o outro fez com você? Tirou as calças pela cabeça? Chorou, bateu de volta? Esqueceu, recalcou? Vamos ver isso. Essa é a parte que te cabe.
Quando você faz isso, diz com todo o carinho, jeito e afeto, empático pelo seu paciente – não é isso. Vamos tentar outra coisa, porque essa narrativa na qual você está metido, não é isso. Vou dizer de outro jeito: quando você diz isso de uma maneira, vamos dizer assim, que o outro pode escutar, começa a haver transferência. Você abre as comportas para que aquele sujeito diga “ah é? Então vou te mostrar como eu sofro e vou sofrer junto com você”. Sem isso, não há análise. Vou encenar meu sofrimento para você, vou culpar você pelo meu sofrimento, vou incluir você como personagem nessa história mirabolante. E é só aí que a gente pode então interpretar. Então real, retificação das relações do sujeito com o real, transferência e interpretação. E é só? É só. É só isso que a gente faz. É incrível o potencial de redução, claro, que os estruturalistas estão querendo. No fundo, você tem três procedimentos: subjetivação, implicação transferência e interpretação. E a interpretação vai ser tomada por Lacan não como uma explicação, mas o xis da interpretação mais transformativa é aquela com que você joga com o significante, você devolve uma palavra que já estava circulando ali na estrutura daquele sujeito, numa outra posição, tal qual o caleidoscópio se transforma completamente. Você mostra a insistência e repetição de um significante em que o sujeito se diz “Peraí, o que eu estou repetindo aqui é essa significante, não é um mundo, não é um filme inteiro, é esse significante”. E é assim que a gente transforma uma metáfora do sintoma na metonímia do desejo. É basicamente, esse é o feijão com arroz da análise todo dia. Onde está a metáfora vamos converter em metonímia, implicar o sujeito e transformação das relações com o real, transformação real, simbólico, imaginário.
Vamos então agora ao último capítulo desse nosso segundo encontro, que vou ter que ser meio rápido com vocês. Aqui, basicamente, é uma plataforma que Lacan vai trazer a partir da ideia de que o inconsciente se estrutura como linguagem, que é relativa a uma redefinição do que é a psicanálise. Para Freud, definição canônica, psicanálise é o nome de um método de tratamento de afecções nervosas que não seriam acessíveis por outro caminho. É o nome de um método de investigação de fenômenos psíquicos que coligidos pelo exercício desse método. E é o nome de uma nova ciência que organiza isso tudo em conceitos e dá alguma unidade que explica porque a gente faz o que faz. Aí vem o Lacan e diz que estão valendo essas três: método de tratamento, investigação e teoria, mas a psicanálise é também uma ética. Isso revoluciona a formação dos psicanalistas, ou seja, a partir daqui você tem que se engajar numa certa relação com o desejo para praticar psicanálise. Não é funcionário público, batendo cartão e fazendo sempre a mesma coisa porque é o trabalho. Ou você entra com o seu desejo, eticamente, ou está vendendo pipoca, fazendo outra coisa.
A experiência moral que se poderia chamar de ascese freudiana – Wo Es war sol ich werden (Lacan, J. (1959-1960) O Seminário VII: A Ética da Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 16-19)
Isso é um dito de Freud no final das Conferências Introdutórias, que sintetiza o que a gente espera da análise: “onde o id estava [onde as pulsões estavam, onde o real estava], ali devo eu advir”. Ali onde havia pulsão acéfala, onde havia o real, a repetição, ali sujeito, vamos produzir sujeitos, e sujeitos, portanto, para um desejo, não sujeito só da emancipação, da razão, da livre-determinação; sujeitos de desejo. E aqui ele vai logo no início do seminário dizer que, para fazer isso, é necessária uma crítica muito séria de três ideais que atravessam a psicanálise, mas dos quais a gente tem que fazer a crítica – não recusar, mas distanciar.
Primeiro, a crítica do amor humano como concluído. De que uma análise vai levar você a encontrar a segunda metade da laranja, amar aquele par do pé doendo para o sapato estragado, e de que, enfim, o amor é uma substância onipotente. Isso está na nossa cultura, nas nossas religiões, infelizmente a gente vai dizer que sem o amor, ninguém se transforma. O amor é uma força muito importante, mas o desejo é mais forte. O amor não é tudo, o amor precisa se qualificar para realmente ser transformativo. Em geral, neurose provoca um amor de qualidade baixo, repetitivo, narrativa solta, enfim.
Segundo ideal é o da autenticidade. Fazer análise para se tornar “eu mesmo”. Sim e não, porque não existe “eu mesmo”. O Eu é sempre duplo, uma máquina de alienação, isso é uma casca de cebola, que você descasca e no fim não há nada. O autêntico não está em uma essência, mas em uma relação com o ato, com a autoridade, com o outro. Aí existe autenticidade. Veja, não é que você vai criar-se como um ser de absoluta autenticidade, mas sim progredir em sua autonomia e independência, que são os dois eixos que, juntos, formam uma relação de autenticidade com o próprio desejo, com o próprio corpo, a própria imagem e destino. Uma vida vivida nos próprios termos, nos termos desta vida, e não nos termos de uma escravização a ideais que são estranhos.
Terceiro ideal a ser criticado é o de não dependência, que, no fundo, pode ser dito como um ideal de que somos independentes ao não precisar dos outros, quando fazemos apenas o que queremos. Isso não tem a ver com assumir seu desejo, mas com esse ideal moderno que confunde dependência e autonomia.
_A ética da psicanálise não é uma especulação que incide sobre a ordenação, a arrumação, do que chamamos serviço dos bens. Ela implica, propriamente falando, a dimensão que se expressa no que se chama de experiência trágica da vida. _(Lacan, J. (1959-1960) O Seminário VII: A Ética da Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 16-19).
Psicanálise não é coach, feita para você colocar sua vida em ordem. E vejam, voltamos à literatura: tragédia é um gênero do século 7º ao 5º a.C., da Grécia (Sófocles, Eurípides, Antígona, Édipo...), em que você tem um tipo de história em que existe um proto-agon, um herói que contém um conflito dentro de si (protagonista); segundo, ele comete uma hybris, ultrapassa sua própria medida, faz algo que não cabe em si, vai além de seu metro; terceiro, ele é punido por isso, os deuses se voltam contra ele; quarto, quanto mais ele foge do próprio destino, mais ele o realiza. Então é melhor inventar um destino que não seja a fuga, que esteja à altura do desejo, e é isso que Lacan vai trazer dos antigos para a nossa experiência contemporânea.