Ideias para reflorestar o imaginário
Por Guilherme Peres
É algo curioso de se pensar que em face das aparentes faltas de saída impostas pelo mundo contemporâneo, buscamos não apenas as descobertas e inovações das ciências a respeito do funcionamento da mente (e como salvá-la de si mesma), mas também saberes e práticas ancestrais que atravessaram o tempo. Que são reinventadas e redescobertas, apesar de esforços que buscaram silenciá-las e eliminá-las durante séculos.
Não é novidade que nos cobramos demais. Dentro de uma necessidade de produzir e desempenhar, criamos expectativas em relação a nós mesmos e nos sentimos culpados quando não as atingimos. Essa dinâmica também transforma as práticas de cuidado e autoconhecimento em recursos a serem experimentados: buscamos cuidar e conhecer para podermos produzir mais. Para sermos melhor ajustados a essa mesma dinâmica de existência e (re)produção de vida que nos levou a essa busca por melhora em primeiro lugar.
Ventos sopram em ambas as direções, nunca à toa. Se é verdade o que Freud escreveu sobre toda psicanálise pessoal ser também social, estes “sinais dos tempos” são sintomas - de quê? Resta a pergunta. Talvez do ressentimento em relação às promessas não cumpridas de autonomia e prosperidade. Muitas de nossas ações ainda nos evidenciam como reféns de desejos que muitas vezes desconhecemos. Mais que isso, a ciência e a razão transformaram sonhos em realidade - mas também os pesadelos, como nos lembra a famosa frase de Theodor Adorno:
Não há nenhuma história universal que conduza do selvagem à humanidade, mas há certamente uma que conduz da atiradeira até a bomba atômica. (Theodor Adorno. Dialética Negativa, Zahar, 2009, p. 266)
Daí voltamos à ancestralidade como num fetiche, adaptando-as e nos apropriando delas, classificando-as de acordo com sua eficácia e seu valor de experiência. Descolamos os ritos e práticas de seus significados e contextos, pinçando aqui e ali o que interessa a este ou aquele propósito. Sem margem para a complexidade, sem lugar para o meio-termo, nossa lógica binária e inflexível torna quase impossível a missão de enxergar valor para além da serventia. Torna, também, qualquer subversão de hierarquias uma ameaça à existência. Nosso imaginário se desmata.
Vamos ser um pouco ousados? E se essa combatividade da subversão resultasse, sim, num desmonte, mas com um acréscimo? Um “re”monte em seguida, fortalecido pelo deslocamento de perspectiva. E se o que parece uma ameaça fosse, na verdade, uma oportunidade de saída? Em Pedagogia das Encruzilhadas, Luiz Rufino elabora um pouco essa ideia:
A encruzilhada é o principal conceito assente nas potências do orixá Exu, que transgride os limites de um mundo balizado em dicotomias. A tara por uma composição binária, que ordena toda e qualquer forma de existência, não dá conta da problemática dos seres paridos no entre. (...) A encruzilhada não é aqui reivindicada para negar a presença da modernidade ocidental, mas para desencadeirá-la do seu trono e desnudá-la, evidenciando o fato de que ela é tão parcial e contaminada quanto as outras formas que julga (Luiz Rufino. Pedagogia das Encruzilhadas. Mórula, 2019, p. 16-19)
Chegamos ao mote da saúde mental. Buscamos alternativas que nos permitam contornar seu esgarçamento, sem olhar com carinho para o que abala suas estruturas - se nos alienamos conscientemente ou não, é outra história. Será que temos medo demais de parecermos radicais demais? De termos opiniões fortes demais? De soarmos sonhadores demais? Tudo isso num mundo onde o radical (palavra que vem de “raiz”, aquela parte oculta e íntima que nos origina e nos dá forças), as opiniões e os sonhos devem ser escamoteados, deixados para amanhã.
Não sei a resposta e suspeito que ela deva ser buscada em conjunto, construída em camadas. Daí a importância de se falar sobre esses becos sem saída (aparente). Daí a importância de um exercício de humildade ao reconhecermos nossa insuficiência. De um contato apaixonado com os diferentes saberes para, com isso, ao nos destronar, reflorestarmos nosso imaginário.