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Psicanálise - 01 de dez

Amor de Migalhas - Entrevista com Valeska Zanello

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Por Luís Mauro Sá Martino

ícone tempo de leitura Leitura: 8 mins

“Mulheres aprendem a amar os homens, homens aprendem a amar o que quiserem”. Essa é uma das ideias centrais do livro "A Prateleira do Amor" (Appris, 2022), de Valeska Zanello, professora do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília (UnB). Pesquisadora na área de gênero e saúde mental, tem concentrado seus estudos no aprendizado social que leva mulheres a se reconhecerem apenas na maternidade ou como objetos do amor masculino. Psicóloga clínica, doutora em Psicologia pela UnB, com estudos na Universidade Católica de Louvain, na Bélgica, ela vem mostrando os efeitos negativos das desigualdades de gênero na saúde mental das mulheres. Em entrevista ao blog da Casa do Saber+, diretamente do Canadá, onde está em uma temporada de conferências, ela detalha seus estudos sobre o tema e mostra as alternativas para sair dessa situação.

O que é a “prateleira do amor”? Como você chegou a esse conceito?

Nós, mulheres, desenvolvemos uma relação conosco mesmas mediadas pelo olhar de um homem que nos escolhe. Terceirizamos nossa autoestima e aprendemos que só somos desejáveis se tiver alguém nos desejando. É muito comum, na clínica, ver mulheres dizendo, “nossa, tem dois anos que nenhum homem se interessa por mim. Tô feia, tô velha, tô acabada”. Aí vem todos os valores relacionados ao ideal de feminilidade e de beleza.

Criei a metáfora da prateleira do amor para entender essa lógica afetiva que as mulheres aprendem, uma forma de amar identitária que vulnerabiliza as mulheres.

Assim como em uma prateleira de supermercado alguns produtos ficam na frente e outros mais atrás, a prateleira do amor coloca mulheres diversas, diferentes, em lugares diferentes. Essa prateleira é mediada por um ideal estético, historicamente construído. Do final do século 19 para cá, esse ideal é branco, louro, magro e jovem.

Quanto mais distante desse ideal, pior o lugar dessa mulher na prateleira e maior a chance de ser preterida, tanto por homens brancos quanto negros. Quanto mais para trás o lugar, mais ela é somente objetificada sexualmente, e não vista como uma pessoa digna de receber amor, afeto, carinho, ser assumida por uma relação amorosa.

A prateleira é profundamente racista. Não é à toa que se discute tanto a solidão da mulher negra. Mas também lá para o final da prateleira estão as mulheres gordas, indígenas e velhas. E ser velha, em muitos lugares do Brasil, significa ter 30 anos.

Nesse cenário, homens detém o privilégio de escolher – e buscar mulheres próximas do padrão – enquanto as mulheres vivem a expectativa de serem escolhidas. Por isso, são ensinadas a aceitar o que aparecer e ainda ficarem gratas e felizes. Quais os efeitos disso na vida psíquica das mulheres?

A prateleira é boa para os homens porque cria uma assimetria: homens são eleitos como avaliadores físico e moral das mulheres. Qualquer “perebado”, e aqui é um sentido metafórico, não só físico, pode ser moralmente ou em qualquer esfera, se sente no direito de avaliar uma mulher. Aquele homem com a barriga de chope que está na praia e diz “Olha lá a baleia!”. Ou o cara que é um “pegador sexual” e diz “não vou namorar fulana porque ela é uma piranha”. Os homens se outorgam esse direito. Quem avalia as mulheres na prateleira do amor são os homens, e quem avalia os homens são os próprios homens.

Aprendemos que a chancela de sucesso do nosso valor de “mulheridade” é ser escolhida. Isso cria uma rivalidade entre as mulheres, porque a gente quer brilhar mais ou apagar o brilho da coleguinha. Isso cria também uma relação marcada por uma assimetria do dar e receber. Em geral, mulheres heterossexuais no Brasil dão muito mais do que recebem. A gente aprende um amor de migalhas.

As informações à disposição nas mídias digitais, incluindo relatos sobre relações tóxicas, poderia prevenir esse comportamento? Ou o efeito é justamente o contrário?

O conhecimento sobre relação tóxica pode ajudar, mas é insuficiente. Precisamos ter políticas de intervenção social que ajudem não só a identificar que a relação é tóxica, mas o que, nessas mulheres, faz com que fiquem nesse lugar. Não é só algo biográfico. Precisamos politizar o sofrimento decorrente de violências estruturais, como o sexismo e o racismo. O letramento de gênero e letramento racial podem ser profundamente libertadores. Isso é totalmente possível.

A tradição do amor romântico, da literatura às séries de TV, mostra o relacionamento amoroso como sinônimo de felicidade. O “final feliz” é o casamento no final da história. Como isso reforça a ideia da prateleira do amor?

A mídia em geral, não só filmes, séries ou músicas, bombardeia, desde o dia que a gente nasce, com esses scripts de gênero. Para as mulheres, em geral, o que é vendido? Que o objetivo principal das nossas vidas, o sucesso, independentemente do que você faça, é ser escolhida, de preferência por um homem bem sucedido, desejado, famoso. Quanto mais chancelado esse homem em sua masculinidade, ser escolhida por ele faz você ter um upgrade na bolsa do amor.

Essas mídias são tecnologias de gênero, termo criado por Tereza de Lauretis para se referir a produtos culturais que não apenas representam as diferenças de gênero, mas têm um caráter ativo. Eles criam e reforçam esses próprios valores, crenças e ideais.

O que a gente aprende como mulher? Que o nosso principal capital é o corpo. Segundo, que você pode ser o que for, presidenta da república, desembargadora, a mulher mais poderosa do Brasil, mais rica do mundo: se você for solteira, vão olhar e dizer, “nossa, coitada”. Subentendido: está encalhada na prateleira do amor, nenhum homem a escolheu.

A mulher solteira é entendida como alguém sem protagonismo, aquela que foi preterida. Em países sexistas como o Brasil, relações heterossexuais podem ser um fator de risco para a saúde mental. Há muitas coisas boas em ser avulsa ou solteira, mas isso nunca é entendido como uma escolha da própria mulher.

Além da mídia, como as relações pessoais, em especial da família e das amizades, reforçam a ideia da prateleira nos relacionamentos?

Podemos ser tecnologias de gênero umas para as outras. A coisa mais comum para nós, mulheres, é nas festas familiares, quando você fica um tempão sem ver parentes – foi morar em outro país ou outra cidade, estudar, fazer um intercâmbio, trabalhar – é ouvir “Está com alguém? Está pegando alguém? Está com um gatinho?” É a primeira carteirinha que precisamos apresentar para os outros. Se você diz “não”, geralmente falam “Nossa, mas uma moça tão bonita, tão simpática...”. Há um subentendido: deve ter algum problema para estar encalhada na prateleira do amor.

Precisamos pensar na influência que temos sobre outras pessoas. Para as meninas, ao fornecer livros infantis sobre princesas, reproduzimos a ideia de que é preciso ser escolhida por esse príncipe. Em vez disso, podemos perguntar como foi sua aula de ciência, praticar atividades científicas, promover outro tipo de literatura. Uma dica para quem for ler a entrevista é procura estimular outras possibilidades identitárias para as meninas.

Quais as alternativas de transformação? É possível esperar mudanças a curto prazo?

A principal alternativa, se queremos realmente fazer uma mudança estrutural, é a educação. Hoje em dia, o feminismo tem sido cooptado pelo neoliberalismo e pela venda do empoderamento, uma palavra da qual não gosto muito. Empoderamento, para mim, é sempre um empoderamento colonizado.

O que tem sido vendido? “Vai fazer um spa”, “Vai fazer um skin care”, algo que te leva a melhorar a sua posição na prateleira. A prateleira, no fundo, não é boa para ninguém, apesar de ser pior para algumas. O empoderamento colonizado é melhorar a sua posição no jogo. É diferente da emancipação. O que é emancipação? É mudar o jogo e não melhorar a sua posição nele.

Se queremos mudar, precisamos educar de uma forma diferente. Precisamos promover o letramento de gênero nas escolas. Isso leva a uma politização do sofrimento. É um alívio para grande parte das mulheres perceber que não é um problema só delas, mas algo compartilhado, estrutural. São algumas possibilidades de promover essa descolonização afetiva.

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Luís Mauro Sá Martino

Doutor em Ciências Sociais pela PUC-SP, foi pesquisador-bolsista na Universidade de East Anglia, na Inglaterra. É professor da Faculdade Cásper Líbero, e atua também em cursos de especialização online da PUC-RS, SEPAC, Digicorp-USP e da Casa do Saber, além de ser palestrante em empresas, escolas e universidades. Publicou, entre outros, os livros Sem tempo para nada: como tudo ficou acelerado, porque estamos tão cansados e as alternativas realistas para mudar (Vozes, 2022), Teoria da Comunicação (Vozes, 2009), Teoria das Mídias Digitais (Vozes, 2014) e Ética, Mídia e Comunicação (Summus, 2018), este último com a profa. Angela Marques. É também autor de The Mediatization of Religion, pela editora britânica Routledge, e cerca de cento e sessenta artigos em revistas científicas do Brasil e do exterior.

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