Viver com os Outros | Parte 2 - Deleuze e Guattari
Por Rodrigo Petronio
Aviso: este material é uma transcrição do curso “Viver com os Outros”, realizado pela Casa do Saber e pelo professor Rodrigo Petronio. Por se tratar de uma transcrição, as frases não seguem necessariamente uma ordem ou linha de raciocínio semelhante às de um texto escrito.
Deleuze e Guattari
Capitalismo, esquizofrenia e a proliferação indefinida do Outro
Recapitulando, o encontro passado foi uma primeira aula de abertura e fiz aquela retrospectiva para a gente fazer uma genealogia disso que chamamos de filosofias da diferença. E aí nós falamos de algumas implicações, uma pequena história dessas filosofias da diferença e eu acentuei a obra de três autores: Derrida, Emmanuel Lévinas e Martin Heidegger. Principalmente Heidegger, um dos representantes de uma das linhas dessa chamada filosofia da diferença. A articulação que nós fizemos é que Heidegger e, por conseguinte, todos esses filósofos do século 20, estão tentando desconstruir aquilo que nós chamamos de metafísica da substância, ou filosofias da substância. Essas filosofias da substância, para vocês terem uma ideia, vêm desde Aristóteles, passam pela Idade Média e chegam até Descartes.
A filosofia de Descartes é uma filosofia, uma metafísica substancialista também, que se baseia no “cogito”, que é a substância pensante, ou seja, a substância do pensamento. Então essa filosofia substancialista, essa metafísica da substância, tem várias implicações e, por isso, esses autores querem desconstruir este tipo de filosofia para se pensar a diferença. Essa diferença que nós chamamos, no encontro passado, de diferença ontológica seria um segundo grau, um grau mais radical (no sentido de “raiz”, de “radit”, no latim) que seria a origem dos nossos pensamentos, representações de mundo e, por conseguinte, da própria subjetividade humana que precisa escavar esse sentido mais radical para podermos compreender o ser humano. Essa é a proposta de Heidegger, desses filósofos, e Derrida, que é esse filósofo que construiu – e por isso não gostava muito do termo – a filosofia da desconstrução.
Derrida lançou, fundou as bases dessa filosofia da desconstrução. Ele segue também essa prerrogativa Heideggeriana, segue essa noção, essa busca por uma filosofia da diferença, por nós tentarmos superar a nossa relação com o mundo que é fundada sobre uma relação entificada, como nós falamos no encontro passado, ou seja, nós nos relacionamos com entes e os entes já são cristalizados, já são, em alguma medida, relativamente prontos. Por isso é preciso pensar essa dimensão diferencial, para que o mundo se elucide, se ilumine – a imagem de luz, de iluminação é muito recorrente na filosofia de Heidegger, a “Erleuchtung des Seins”, a iluminação do ser, o mundo precisa se iluminar e se ilumina quando conseguimos sair dessa dimensão entitativa. Aí temos acesso a esse segundo grau do ser, que é mais originário, que seria esse grau diferencial desse ser, que se diferencia desse mundo, aquilo que Heidegger chama de intramundano. O intramundano é a dimensão das coisas, da entificação. A dimensão desse ser que se revela, que se desvela, para usar o termo mais técnico, seria essa nova diferença.
Hoje nós vamos abordar dois autores que são Gilles Deleuze e Félix Guattari. Vou falar um pouquinho bem rápido deles. O subtítulo da nossa aula de hoje é “capitalismo, esquizofrenia e a proliferação indefinida do Outro” e vocês vão entender o porquê disso, e qual essa concepção de esquizofrenia que Deleuze e Guattari estão cunhando. Eles são considerados também dois grandes pilares das filosofias da diferença e dos processos de diferenciação da subjetividade humana e não humana – a gente vai ter que falar um pouco sobre isso – no século 20.
Heidegger de um lado, Deleuze e Guattari de outro, são atitudes e linhas filosóficas quase opostas. Existe até um certo conflito entre essas linhas, mas eu não me interesso por esses conflitos, mas pelo pensamento, e acho que esses dois autores têm muito a nos oferecer, cada um a seu modo. Vocês vão ver até que a proposta também de Deleuze e Guattari há muito em sintonia com essas outras propostas, de Heidegger, Derrida e Lévinas, e que, no fundo, tudo está dentro do nosso curso, que é modos possíveis de pensar o outro, de pensar a diferença, de viver com o outro, quando nós conseguimos definir o que é essa “outridade”, para usar um termo de Derrida. Essa “outridade” é essa alteridade radical, é pensar o outro como outro, e não o outro como uma extensão de mim mesmo.
Aí Deleuze e Guattari. Deleuze é um filósofo, tem uma carreira muito grande, muitos livros, uma obra bastante extensa. De um modo geral, admiro muito os dois, acho que Deleuze e Guattari estão entre os dois maiores filósofos do século 20. Deleuze faz um percurso que é bastante didático e coerente. Ele começa publicando livros de comentários, livros que comentam outros autores. Primeiro livro sobre David Hume, livro sobre Bergson, livro sobre Espinosa, livro sobre Nietzsche, livro sobre Kant, livro sobre Leibniz, então ele tem uma atitude de extrema humildade, no sentido de que ele se julgava um comentador de filosofia e não um filósofo. Só que, a partir de “Diferença e Repetição”, esse livro central já pelo próprio título, já traz aí inscrito o tema da diferença, Deleuze já começa a exercitar um pensamento que seria mais maduro, mais autoral, mais ensaístico, investigativo, e quando ele se liga, que se junta ao amigo dele que é Guattari, daí sim ele começa a produzir uma filosofia muito potente.
Daqui a pouco vou falar da importância da arte para Deleuze e Guattari, para ambos, mas especialmente para Deleuze. Guattari é um autor que também preciso tomar muito cuidado, porque ele foi muito marginalizado dentro da universidade, ele vem dos trabalhos de lutas operárias, de trabalhos de base na sociedade, trabalhos com operariado. Então ele não teve uma carreira acadêmica digamos “mainstream”, mas ele é brilhante, um gênio praticamente, e criou aquilo que nós chamamos de terapia institucional.
A terapia institucional é uma alternativa à psicanálise e é uma das críticas mais poderosas à psicanálise. Deleuze e Guattari, como vamos ver, a obra deles é a crítica mais profunda à psicanálise e eu vou dizer o porquê disso. Todos os psicanalistas leem Deleuze e Guattari para entender as críticas profundas, estruturais, radicais que fazem à psicanálise, e isso já começa na própria obra individual de Guattari, que já é essa obra ligada à terapia institucional, que no fundo não visa um trabalho clínico, ou seja, a ideia do Guattari é que as questões do inconsciente, da subjetividade, não podem ser trabalhadas de modo biográfico, individual. Não é um trabalho de indivíduos, é um trabalho de instituições. Então não é possível, por exemplo, normatizar um determinado padrão do inconsciente, do desejo humano, e trabalhar esse padrão num nível individual sem que nós revejamos a política, o Estado, a escola, a indústria, os modos de produção, as empresas. Aí já tem toda a questão ligada ao capitalismo e esse termo, essa relação entre capitalismo e esquizofrenia, que está na raiz do projeto de Deleuze e Guattari que vamos ver.
Eu falei pra vocês então, capitalismo e esquizofrenia, o que é isso? É um projeto de Deleuze e Guattari que levou, eles trabalharam nisso duas décadas, mais ou menos, a começar por esse livro chamado “O Anti-Édipo”. Então vocês já podem ver que é um livro, quase um manifesto antipsicanalítico. Eles estão também na trincheira, nos anos 1960, da luta antimanicomial, fazendo bastantes críticas aos manicômios, que eram situações muito complicadas, muito diferente do que temos hoje em tratamento, em teorias e práticas psiquiátricas. Eles estavam nesse combate de trincheira também contra a psicanálise e aí espero trazer para vocês, para que a gente consiga aqui entender um pouco quais são os motivos deles.
Esse projeto começa com “O Anti-Édipo” e depois se deslinda, se desdobra no “Mil Platôs”. Tomem cuidado só, porque a edição brasileira de “Mil Platôs” foi desmembrada em cinco volumes. “Mil Platôs” é uma obra só, é um projeto chamado “Capitalismo e Esquizofrenia” que é composto de dois tomos – primeiro “O Anti-Édipo” e o segundo “Mil Platôs”. É só uma questão editorial que houve esse desmembramento, não é que são vários livros.
Aí uma linha também de a gente compreender e estudar a filosofia desses autores é um livro mais do final da vida de Deleuze, escrito também a quatro mãos com Guattari, que é o livro chamado “O Que É Filosofia?” Esse livro tem esse título bastante simples, quase jocoso, mas é um livro de final de vida. No fundo, Deleuze dizia que a pergunta pelo que é a filosofia não deve estar no começo, tem que estar no fim. Só depois que exercitei toda a filosofia é que vou conseguir definir o que a filosofia é para mim. Esse percurso está muito marcado ali e esse livro é um livro bem denso, bastante difícil, mas é também uma chave de entrada do fim para o começo, para se entender todos os mecanismos, conceitos desses autores.
O primeiro ponto que quero trazer para o nosso debate, primeiro ponto está na ontologia. Vejam só, o que é a ontologia? “Ontos” em grego quer dizer “ser” – a ontologia é quase que a gente pode dizer que a filosofia e a ontologia surgem juntas. Todos os filósofos pré-socráticos, anteriores a Sócrates, estão propondo uma investigação de mundo que é ontológica. Ou seja, estão tentando desvendar, definir, organizar o mundo, a realidade, a partir de certos seres matriciais. Ou, do que essa realidade é composta? Sempre que nós falamos em ontologia, falamos em uma tentativa de compreender o real enquanto real. Ou seja, a efetividade do mundo em que vivemos. E aí eu já estou pensando a ontologia no modo amplo, não apenas na Antiguidade. Sempre que vocês ouvirem esse termo ontologia, quer dizer que nós estamos pensando numa efetividade do real, ou seja, o real não é puramente mental, uma representação, não está apenas na subjetividade, não é apenas uma imagem, o real, a realidade ela é efetiva. Vocês vão ver que isso tem muitos compromissos e consequências que decorrem dessa concepção.
Lá na Antiguidade, quando nós vemos Empédocles, ele vai falar que existem, qual que é o princípio da natureza e do mundo? O fogo, a água, terra e o ar. São quatro elementos, é uma visão ontológica. Quando vemos até mesmo Tales, que diz que o princípio é a água – ou seja, essa água não é uma água empírica, a água que nós temos acesso. A água é um princípio metafísico, ontológico, porque é um ser que configura a essência de todos os seres. Ou seja, um princípio da realidade. E assim sucessivamente.
Toda essa investigação da ontologia percorre também quase 20 séculos, desde os pré-socráticos, desde o século 5º a.C., 4º a.C., até o século 17, 18. Por que digo até aí? Porque no século 18 há uma das maiores críticas, e é uma crítica central à ontologia, que é a crítica feita por Kant. O filósofo do esclarecimento alemão, no final do século 18, na década de 1790, em 1792-93, mais especificamente, que ele começa a publicar as suas três críticas: “Crítica do Juízo”, “Crítica da Razão Prática” e a “Crítica da Razão Pura”, e se diz que Kant teria criticado a ontologia porque, para ele, nós não conseguimos acessar as coisas, não conseguimos acessar o real. Nós só acessamos fenômenos. Por que estou trazendo isso? Porque desde o século 18, falar em ontologia se tornou algo problemático. E aí nós já vemos algo que é diferencial e que é potente na filosofia de Deleuze e Guattari, porque eles vão recuperar esse pensamento ontológico com toda a sua potência, com toda a sua força.
Dentro dessa perspectiva da efetividade dos seres, da realidade efetiva dos seres e de todos os seres, incluindo o desejo humano, a primeira pergunta que els vão fazer é concernente a essa relação entre identidade e diferença. Vocês se lembram que nosso encontro passado eu disse que existe uma dialética entre esses dois conceitos. Para determinar qualquer identidade de qualquer ser nós pensamos tanto naquilo que fundamenta esse ser, quanto naquilo que diz respeito às diversas diferenças, ou seja, todos os modos pelos quais esse ser se diferencia dos outros seres. Dei um exemplo usando a mim mesmo, então a especificidade do Rodrigo é algum fundamento, algo que diga algo sobre a “rodriguidade” do Rodrigo e, ao mesmo tempo, há um processo de diferenciação. De certa maneira, há algo em mim que me difere de mais de sete bilhões, quase oito bilhões de seres humanos no mundo. Existe uma dialética nisso. O que a gente tinha dito no primeiro encontro, e essa é a prerrogativa das filosofias da diferença no século 20, é que houve uma certa hegemonia, uma certa não, uma absoluta hegemonia ao longo de quase 20 séculos de filosofia, dos chamados princípios de identidade. Ou seja, se pensou muito mais na essência do Rodrigo, naquilo que fundamenta a eternidade do Rodrigo, do que exatamente naquilo que o difere dos outros seres. Então a pergunta que a gente pode colocar, que Deleuze e Guattari vão fazer, é “como é possível pensar a diferença pura?” Ou seja, então, será que quando nós falamos de, por exemplo, diferenciação cultural, vejam o problema que isso dá. Se eu tenho um princípio de identidade que define a alma, o que que é a alma, esse princípio de identidade funda uma categoria muito profunda, muito forte, que seria a categoria do humano. Ou seja, os humanos têm alma, certo? Isso é uma visão metafísica substancialista. Qual é o problema disso? Se nós vamos observar os ameríndios aqui, os antropólogos, quando vão etnografar povos não ocidentais, o emaranhado de acepções que esses povos têm de nomes, classificações, taxonomias, classes, descrições, do que nós chamaríamos de processo anímico – ou seja, relativo à alma – nem sempre se encaixa naquilo que nós chamamos de alma. Por quê? Porque aquilo que eles chamam de alma é radicalmente diferente do que aquilo que nós chamamos. Então, qual é a grande questão de Deleuze e Guattari e das filosofias da diferença? Será que quando identificamos a alma de outros povos, não estamos simplesmente encaixando nosso conceito de alma naqueles povos? E essa é a pergunta então “como é possível pensar a diferença pura?”
Ou seja, preciso pensar no processos mental-cognitivo-anímico de cada grupo, de cada população, de cada cultura a partir de seus próprios critérios, e não simplesmente aplicando certos critérios supostamente “universais”, entre mil aspas (vocês devem já ter percebido que aqui há uma grande crítica da universalidade, do conceito de universalidade). Eu não posso simplesmente aplicar esses conceitos a outras populações, a outras etnias, a outras categorias de mundo que não são necessariamente ocidentais. Então vocês vejam como essa filosofia começa a se tornar movediça, porque todos os humanos se diferenciam, os grupos humanos se diferenciam e nós não temos um critério básico de junção, não existe um mesmo guarda-chuva capaz de juntar tudo isso. E isso é um dos caminhos para se pensar essa alteridade radical. E é isso que Deleuze e Guattari vão chamar de devir-outro: quando eu abandono meu ponto de vista, eu tento me transformar no outro, ver quais são os critérios do outro, e aí vamos ver que eles vão expandir esse devir-outro, ele não é nem humano, é transumano, porque o devir-outro é também um devir animal, vegetal, um devir pedra, um devir planeta, um devir bactéria, um devir que pode nos produzir uma percepção do humano radicalmente diferente daquilo que o humano julga ser. Então esse é o primeiro ponto.
O segundo ponto, segunda pergunta feita por Deleuze e Guattari, é essa pergunta que é concernente à noção de substância e de substrato. A pergunta é a seguinte: como é possível pensar uma substância sem substrato? Essa é a pergunta que eles não fazem literalmente assim, eu é que estou construindo o argumento, mas essa é a pergunta que atravessa toda a obra deles. E por quê? Aqui a gente já entrou em outro conceito, um conceito novo, que é o de substrato. Nós estávamos falando até agora de substância, mas o que é substrato? Vocês se lembram também no encontro passado que eu disse que dentro desse pensamento substancialistas, que vem desde a Antiguidade, existe essa vontade, essa ideia, essa hipótese de que todas as substâncias têm uma espécie de base fixa, ou de essência eterna, ou de fundamento que é imutável. Então a substância pode se transformar com todas aquelas nove categorias de Aristóteles. Eu posso mudar de lugar, de tempo, de relação, de espaço, de quantidade, de qualidade, mas a minha substância não muda, porque existe um substrato aqui que mantém.
O grande filósofo, um gênio, um dos precursores da teoria darwiniana, Leibniz, que é um filósofo do final do século 17, um racionalista, Leibniz é um filósofo às vezes muito mal compreendido, às vezes caricaturizado, nós precisamos ler Leibniz. Ele vai ser um dos primeiros a pensar o seguinte: será que é possível descolar a substância do substrato? Ou seja, será que não existe um modo da substâncias do mundo se transformarem sem que haja nada que as fixe? Ou sem que haja nada que as mantenha fixas e que possibilitem que elas sejam sempre elas mesmas? Essa é a pergunta leibniziana. Por que Leibniz está fazendo essa pergunta? Há uma obra dele chamada “Protogaea”, uma obra de geologia, mas, na verdade – por isso que eu disse que é um dos precursores de Darwin – está tentando pensar a evolução da vida na Terra em uma escala gigantesca, já de milhões e milhões de anos. Ele é um dos pioneiros, no século 17 ele está tentando quantificar, está estudando fósseis de Nautilus, de seres vivos, e Leibniz cria isso que ele chama de “lex continui”, a lei da continuidade.
A hipótese de Leibniz é a seguinte: dentro do seu sistema da natureza, se existe uma evolução e se esses seres cujos fósseis estão aqui, eles evoluíram, quer dizer que existe uma lei de continuidade entre humano e a natureza. Quer dizer que talvez nós tenhamos evoluído de outros seres que seriam mais simples, em certo sentido. Vejam, né, o argumento já é basicamente o argumento darwiniano, a teoria da evolução já está posta. O que essa “lex continui” obriga? Por que ela é uma bomba? Leibniz vai dizer então que, se existe uma evolução, e se um ser se transforma no outro, se a natureza é uma grande metamorfose de seres, não é possível haver nada fixo. Para que nós tenhamos um primeiro unicelular que se transformou e que foi adquirindo complexidade, que gerou a floresta amazônica, os dinossauros, os pterodátilos e o humano, é sinal de que a natureza e a vida estão em constante metamorfose. Então Leibniz é um dos primeiros a descolar a relação entre substância e substrato. Porém, e isso é importante, ele preserva a noção de substância.
Ou seja, todos os seres são substâncias; se são substâncias, são reais, efetivos, existem de fato, não é algo apenas que existe na minha mente, como queria Kant, não é algo que existe apenas como uma cogitação racional, como queria Descartes; não, os seres são substanciais, efetivos, só que eles estão em constante devir. E essa palavra “devir” é a chave da filosofia de Deleuze e Guattari, porque o devir, então, não retém (não é que não retém nada, retém muita coisa, mas pensar as substâncias em devir é pensar essa perpétua transformação dos seres uns nos outros, sendo que não existe um substrato de base que os eternize). Esse é um problema que eu rapidamente também, só para vocês terem uma dimensão, é um problema teológico. Leibniz é um racionalista que trabalha com a noção de Deus, ele está imaginando Deus como uma grande categoria dentro do sistema da natureza que dê fundamento para a ordem racional, e não como um Deus de crença, ou de fé. Para Leibniz, qual era o problema também dessa eternização? Porque se o homem tem algo eterno e se existe a lei da continuidade, quer dizer que os coelhos, as girafas e os tamanduás também têm algo de eterno. Onde essas criaturas iriam parar? Teria de ter um paraíso para todo mundo. Ou seja, um paraíso espelho, como se a natureza toda tivesse que ser replicada numa espécie de segundo mundo depois da morte. Isso, para Leibniz, é irracional. Então, ou seja, no fundo não tem, o que seria esse substrato? Essa é uma grande questão, e essa é a questão de Deleuze e Guattari.
E a terceira questão, por fim, é a relação entre pensamento e ser. Por que Deleuze e Guattari vão trazer esse problema de pensamento e ser? Mais uma vez, uma retrospecção, uma filosofia muito potente que está minando as bases da própria filosofia, vamos lá para os pré-socráticos, para os antigos. Qual é a grande concepção? Todos os seres são. Só o homem pensa. Essa divisão, esse antropocentrismo, ele diz respeito a essa cisão entre pensamento e ser. Essa cisão continua até no próprio Heidegger, que tem uma frase, parafraseando, “o anjo é, o pássaro é, o céu é, as plantas são, só o homem existe”. Heidegger está pensando numa dimensão, nesse ponto ele retém muita coisa da filosofia ocidental, numa divisão radical entre humano e os demais seres. Deleuze e Guattari vão dissolver essa diferença entre humanos e demais seres.
Por isso que a pergunta possível é: como é possível integrar pensamento e ser? Vejam, aqui eles estão elaborando essa teoria nos anos 1960, mas hoje em dia teorias da complexidade, tecnologias da inteligência, um movimento atual chamado “non-human turn”, a virada dos não humanos, hoje temos muitas teorias que advogam por essa noção de que não existe uma separação entre os humanos e demais seres vivos, nem os outros seres não vivos, e que no fundo seria uma grande gradação apenas. Voltamos à lei da continuidade de Leibniz. Então, no fundo, a própria noção de pensamento se expande. A gente tem que lidar com uma categoria, uma moldura de um pensamento distribuído, ou de consciência distribuída. Todos os seres têm níveis de consciência e essa consciência toda caracteriza esse pensamento que não é mais humano. Deleuze e Guattari implodem essa centralidade do humano e isso tem vários compromisso que vamos ver.
Essas três perguntas são as perguntas que a gente pode pensar que norteiam a obra toda deles, mas vamos pensar também numa outra chave, e por que esses dois filósofos são tão importantes. Se temos a noção de que pensamento e ser são a mesma coisa, que existe uma consciência distribuída agindo no mundo, como eles organizam esse pensamento? Trouxe aqui para vocês, para a gente pensar juntos, três grandes matrizes da filosofia de Deleuze e Guattari.
A primeira delas é a matriz dos conceptos e eles colocam assim, em latim, só para remotivar, para imaginar que eles não estão tratando apenas dos conceitos no sentido corrente; temos uma outra grande matriz que é a matriz dos afectos, já vamos falar sobre isso; e temos uma terceira grande matriz, que é a dos perceptos. Conceitos, construção conceitual, conceito é a ferramenta básica da filosofia. Os afetos, já vou falar sobre isso, mas o que são afetos? São redes afetivas, de afetação mútua entre os seres. E os perceptos, todos os aspectos perceptivos, toda a malha fina, extremamente sutil, da percepção dos organismo, incluindo os organismos humanos.
Essas três matrizes estão dentro disso que Deleuze e Guattari chamam de pensamento. Vejam só, também há outro abalo sísmico na filosofia produzida por esses autores, por que qual é a hipótese deles? A filosofia ficou muito tempo ilhada dentro do trabalho dos conceitos, mas eles vão trazer a seguinte questão. Quando a gente vai ver o termo “filosofia” – amigo do saber, “sophia” -, o que vemos? Vemos que temos uma imagem. Então Sócrates, na Atenas, é um filósofo, mas também, tecnicamente, é aquele que é amigo do saber. Então Deleuze e Guattari vão começar a chamar isso de “personagens conceituasi”, ou seja, no fundo a filosofia surge como personagem conceitual, é alguém que é portador de um conceito, mas também é uma figura, uma imagem, também traz questões afetivas relacionadas a ele, e também traz questões perceptivas.
O que esses autores vão fazer? Eles vão dissolver a filosofia dentro desse caldeirão, dentro dessa moldura muito maior, quase infinita, que é o conceito de pensamento. O pensamento, então, seria uma dinâmica constante entre essas três matrizes.
O que são afetos? Também uma definição mais técnica: afetos, a gente às vezes tem esse senso comum de pensar que afeto é relacionado à emoção, a sentimento, e que os afetos são humanos. Na filosofia, tecnicamente, o afeto é toda propriedade, ou toda a capacidade dos seres se afetarem mutuamente. Então toda capacidade de um ser afetar outro ser e ser afetado por outros seres, essa é a dimensão dos afetos. Por isso que afeto está muito ligado a “páthos”, que é um sentido até de patologia. O que é uma patologia que se desenvolveu no meu corpo? Fui afetado por um vírus, ou fui afetado por uma bactéria, ou fui afetado por um desarranjo do meu organismo. A Lua afeta as marés, a floresta amazônica afeta o clima, o Sol afeta os seres vivos, as plantas afetam a atmosfera produzindo oxigênio e assim sucessivamente. Então quando falamos em afeto, em filosofia, temos que pensar o afeto como uma grande rede de seres humanos e não humanos qe estão o tempo todo se afetando e sendo afetados mutuamente. Um animal que preda uma presa, conduziu essa presa à morte, absorveu as proteínas dessa presa, as proteínas afetaram seu organismo para que ele possa continuar vivendo e se fortalecendo. Essa é a noção básica de afeto. Vocês já veem que é uma noção que não diz respeito exclusivamente ao humano e essa é a noção que Deleuze e Guattari trazem para compor esse tripé do pensamento.
E o terceiro que seriam os perceptos, que dizem respeito a todoas as camadas perceptivas, toda a filigrana da percepção humana, e também da percepção não humana, no sentido de que perceptos também os animais, os cães, os lobos, a matilha – Deleuze e Guattari gostam de usar a imagem da matilha de lobos -, os cardumes, as populações, as formigas, os seres da terra, todos eles têm componentes perceptivos. Quando falei “terra”, então, já estamos diante de uma expressão de Deleuze e Guattari que é uma expressão com a qual definem sua própria filosofia, que é uma geofilosofia, uma filosofia da terra. Então pensamento e terra – terra que estou dizendo abrange toda a Terra – são o mesmo. E todos esses seres que habitam a terra estão distribuídos dentro dessa rede de afetos, perceptos, conceptos. Isso diz respeito também a uma alteridade, uma relação com o outro, é um modelo de subjetividade, ou seja, estão descrevendo uma subjetividade que atravessa o humano, mas que está o tempo todo passando para o além do humano, e que também diz respeito a uma grande importância que eles dão à arte.
Deleuze tem um livro sobre Proust, um livro sobre o pintor Francis Bacon, um livro sobre o escritor Sacher-Masoch, um livro sobre Kafka – Deleuze e Guattari escreveram sobre Kafka -, um livro sobre teatro. Por quê? Porque a arte, os escritos, os artistas – dois livros magníficos sobre cinema, com bibliografia básica sobre cinema do século 20 – são filósofos tecnicamente, porque são produtores de conceptos e perceptos e afectos. Nós saímos dessa noção, e aí a definição que Deleuze dá para a filosofia é que filosofia é a arte de criar conceitos. Todo filósofo, todo pensador é um criador, um artista e um artesão de conceitos. Mais importante é criar, não é ficar descrevendo o que já existe. Isso é criar novos mundos, porque o filósofo também é um artista. Essa impregnação de vários conceitos uns nos outros é central para a gente pensar. Vocês já veem aí que existe um potencial muito grande de alteridade, eu tenho que me relacionar com os outros a partir desse devir-outro, com os animais, as plantas, os seres não humanos; tenho que me relacionar com o não racional, no sentido da arte, das potências de criação; e nós temos que nos relacionar com uma noção distribuída de subjetividade, que a subjetividade é macro, não está simplesmente nos indivíduos, no sujeito humano, ela é distribuída. Essa é uma das principais críticas que Deleuze e Guattari vão fazer à psicanálise.
De onde vem esse pensamento? Vou fazer aqui uma genealogia, um pouco rápido, só para a gente poder posicionar. Já diante dessa categoria macro que é central nesses autores. Quando a gente fala de pensamento, do que ele é feito então? Ele é essa substância sem substrato, feito de átomos. Átomos e acaso. Quando vocês veem, vocês podem me perguntar “Rodrigo, tudo bem, mas os átomos não sã uma coisa meio óbvia?” e eu vou fizer que não. A teoria atomista surge na Grécia Antiga. Epicuro, Demócrito, Leucipo, esses autores têm sistemas atomistas, só que o atomismo ficou muito associado ao ateísmo. Por quê? Esses autores eram críticos dos deuses na Antiguidade. Qual é o problema enorme disso? Lucrécio, um poeta latino do meu coração, um dos autores que mais amo, é um atomista. É um epicurista. “De Rerum Natura”, o poema dele acerca da natureza, é um sistema da natureza atomista. Ele também é um crítico dos deuses. O que aconteceu? Com a hegemonia das religiões abraâmicas, com toda essa hegemonia das religiões, os atomistas foram marginalizados e perseguidos até não poder mais. O problema então, o sistema atomista ficou esquecido. Vejam só, isso é muito interessante quando a gente pensa em Deleuze e Guattari, porque às vezes nós temos pensamentos hegemônicos e que não correspondem a uma efetividade da realidade. Espinosa, Leibniz, começam a retomar o pensamento atomista e, no século 20 a gente tem a revolução da física. Werner Heisenberg, um grande teórico da escola de Copenhague, da teoria quântica, tem um livro brilhante chamado “Física e Filosofia”, ele vai buscar o sistema atomista lá na Antiguidade. Esse elo perdido, para dizer uma das maiores revoluções científicas. Tudo que a gente vive no mundo hoje é baseado em átomos, em teoria subatômica. Só para pontuar isso, porque Deleuze e Guattari vão trazer essa niçãio atomista que foi marginalizada e vão pensar no acaso.
O que é essa substância que é o pensamento? Ela tem uma dimensão cosmológica, que depois a gente via ver lá no Carlo Rovelli quando formos falar de cosmologia. É cosmológico, mas subjetivo, porque o mundo é pensamento. Pensamento é mundo. Unverso é pensamento. E o primeiro modo pelo qual esses pensamentos se constituem é o que eles chamam de “clinâmen”, um termo grego da Antiguidade, que quer dizer “desvio”. Temos que imaginar a origem do Universo, um turbilhão de forças cegas, de átomos girando e turbilhonando no vazio, e existem esses desvios. Só que por meio dos desvios, os átomos podem compor uma primeira forma que é aquilo que podemos chamar de diagramas.
Os diagramas são pequenas moléculas. Estou criando aqui um conceito de molecular, que Guattari chama de revoluções moleculares. Revolução molecular é uma que vem dessa flexibilidade do pequeno. Os primeiros agregados. Quando tenho uma noção molecular, são as moléculas de hidrogênio que constituem uma estrela chamada Sol. As moléculas de água, que constituem os oceanos. É o molecular. O molecular é frágil, é a primeira composição, mas ele é potente no sentido de Deleuze e Guattari, porque o molecular é tudo aquilo que ainda pode ser permeado e alterado.
Esses diagramas, porém, formam outra dimensão, que é o que Deleuze e Guattari chamam de territórios. Depois dessa primeira composição, mais sutil, há uma sedimentação dessa origem do pensamento, desses átomos de pensamento, e que são átomos da realidade, do cosmos, e eles vão formando territórios. Muito importante aqui: quando digo “átomo”, “território”, não estou falando só da física, mas de processos subjetivos, processos de culturas e tudo mais, porque eles estão usando esse conceito como uma metáfora. O território, então, é quando nós temos estratos de pensamento que já estão consolidados, e são modos pelos quais os seres humanos se organizam e fundam grandes matrizes – já vou falar sobre isso. E é isso que está ligado ao segundo volume do projeto “Capitalismo e Esquizofrenia”, que é o “Mil Platôs”. O que é “Mil Platôs”? Platô é um termo da geologia, uma sedimentação geológica. O que é mil? Mil é infinito, infinitos platôs, infinitas sedimentações, que são modos dos sujeitos humanos se estruturarem, mas não só sujeitos humanos. A Terra se estrutura em platôs. A vida se estrutura em platôs. Os seres vivos, os animais se estruturam a partir disso. A vida se estrutura assim e dá origem aos animais e às formas de vida que conhecemos.
Essa dinâmica que nós estamos vendo transcorre numa dimensão que é o que Deleuze e Guattari chamam de plano de imanência. O plano de imanência seria, virtualmente, o Universo – o que chamamos de Universo, as trilhões de galáxias e sóis -, e plano de imanência, essa palavra imanência, o que ela quer dizer? Imanência é o oposto da transcendência, que é tudo aquilo que exorbita uma certa esfera de atuação, e imanente é tudo aquilo que é próprio de um ser. Algo que é imanente a esse objeto que está aqui do meu lado, ou seja, são as propriedades imanentes àquele objeto. O que é um plano de imanência? O plano em que tudo se dá. Por que Deleuze e Guattari estão usando isso? Porque não existe nada fora desse plano. Deus, os deuses, as divindades não são entidades que criaram esse plano; eles estão dentro desse plano. Deusas, religiões, as divindades são territórios que estão se estruturando e que servem para estruturar as subjetividades humanas e que são muito potentes. A pergunta “Deus existe” – não existe, pergunta totalmente tola para Deleuze e Guattari. É óbvio que Deus, deuses, as religiões existem. São grandes territórios, substâncias potentes que estão transformando, quase como uma usina, modificando o mundo, porque são exteriorizações desse plano, estão dentro desse plano de imanência.
Como a gente poderia pensar nesse plano de imanência, no que ele consiste? Porque aí a gente tem às vezes, tem que tomar cuidado quando a gente aborda esses dois autores, porque às vezes tem uma coisa um pouco rápida, superficial, “então o devir, tudo se transforma, não tem nada fixo”... Isso seria uma filosofia fraca. Sim, a matriz de pensamento deles é o devir, essa substância que está sempre se transformando, nada é eterno, tudo está vetorizado, tudo está no tempo, o Universo está no tempo, tudo está no tempo. Está no plano de imanência. Só que existe um complemento desse plano de imanência, que é o plano de consistência.
Os planos de consistência seriam uma espécie de planos de estruturação desse plano de imanência. Dei o exemplo das religiões agora, mas tudo aquilo que é sólido e duradouro, ou que essas grandes matrizes, assim, produzidas pelo sapiens, pelo ser humano, são planos de consistência. O Estado, o sedentarismo, as territorializações, até a militarização, as estruturas de fortificação, as línguas – o que são as línguas? A produção cultural, a arte, a escrita é um grande plano de consistência que preservou toda uma memória humana. As religiões são planos de consistência. Ou seja, é tudo aquilo que é atravessado, que está dentro do plano de imanência. Mas que são essas solidificações. Assim como a Terra gera certos estratos que são mais duradouros (mas não são eternos), o ser humano também está gerando esses estratos, que são esses planos de consistência, porque são consistentes. Então isso vai ser muito importante para a gente pensar essa filosofia e para pensar também, depois eu vou fechar um pouco esses conceitos todos, para a gente pensar um modelo de subjetividade que implica – qual o modelo de subjetividade que está implicado aqui?
Qual é essa relação entre plano de imanência e planos de consistência? O que ela pressupõe? A gente tem os territórios, os platôs, que estão o tempo todo se movendo, ela propõe, está ligada também a um novo conceito de territorializações.
O que são territorializações? Ora, a natureza, então, está em devir. O Universo está em devir. A vida está em devir, mas essa natureza compõe esses territórios. Ela confere consistência a alguns desses planos. Essas territorializações são modos de ser, e esses modos de ser podem também, estão o tempo todo se deslocando. Ou seja, estão o tempo todo também sendo desterritorializados. Nós temos um terceiro momento, que são as reterritorializações. Vou dar aqui um exemplo, que é um exemplo da biologia, para vocês terem uma noção e daí depois a gente pode dar outros exemplos.
Deleuze e Guattari usam o exemplo de uma orquídea que tem a forma de um besouro. A natureza está produzindo territórios. O território é uma produção efetiva de algo chamado orquídea, ou de seres vivos das plantas. O que essa orquídea, como ela se organizou? Ao longo de milhões de anos, talvez, ela começou a assumir a imagem do besouro. Ou seja, de uma certa maneira, ela foi sendo desterritorializada pelo besouro. E por quê? Para que o besouro venha aqui e essa orquídea ela possa ser polinizada e possa expandir sua vida, possa continuar vivendo, ou seja, que ela possa ser reterritorializada. Esse modelo das territorializações, desterritorializações e reterritorializações é um movimento da subjetividade humana, dos signos humanos, que eles estão o tempo todo sendo apropriados, desapropriados, migrando, polinizando outras culturas, reterritorializando, sendo reterritorializados em outras culturas, para depois se dispersarem e continuarem vivendo.
Quando a gente for falar da Judith Butler e, principalmente, do Achille Mbembe, aqui é o debate contemporâneo começa a pegar fogo. Por quê? Porque nós temos, hoje em dia, as teorias identitárias. As teorias identitárias, de uma certa maneira, são herdeiras desse conceito de identidade, o que eu tinha dito. Conceito de identidade vem da metafísica da substância. Deleuze e Guattari estão quebrando isso. O que eles querem dizer é que não existe uma identidade pronta. As identidades são migrantes, metamórficas, não existe um signo pronto. O mundo todo, toda a subjetividade humana é um atravessamento de vários signos que vêm de alguns outros lugares, não existe nada autóctone, tudo é derivado em alguma medida. E isso, então, é uma maneira de pensar a subjetividade e é isso, basicamente, que eles vão chamar de “esquizo”.
Muito cuidado com esse termo. Quando a gente usa – por isso costumo usar “esquizo” e não “esquizofrenia”. Esquizofrenia é um modelo de subjetividade definido pela psicanálise, pela psiquiatria, como uma estrutura psíquica ligada à psicose e que isso é definido dentro dessa linha da psicanálise, da psiquiatria. Isso tem certos enquadramentos específicos, que precisam ser seguidos. Quando Deleuze e Guattari usam o termo esquizo, o que eles querem dizer? Eles querem dizer que todo ser humano, o Homo sapiens, é esquizo desde sempre. Ou seja, o que eles estão querendo é construir uma nova matriz subjetiva que seja alternativa, ou seja, uma crítica à matriz subjetiva da psicanálise. A psicanálise trabalha com uma certa normatização da neurose, ou seja, todos os humanos são neuróticos de uma certa maneira. E trabalham com outras estruturas psíquicas. O que Deleuze e Guattari vão perceber? Eles vão criticar poderosamente essa noção, essa universalidade da neurose. Eles vão dizer que, se nós formos ver a civilização criada pelos humanos, desde sempre os humanos produziram imagens, produziram seres imaginários, produziram seres que não existem. Eles acreditaram nesses seres. Então, desde as cavernas, no fundo, é como se a subjetividade humana estivesse produzindo imagens e tomando essas imagens como se fossem reais. Ou seja, a própria definição do processo esquizo, ou da psicose, é a definição de um embaralhamento entre real e imaginário, mas, para Deleuze e Guattari esse embaralhamento sempre existiu. E mais do que isso: esse embaralhamento, que é essa nova subjetividade, esse novo conceito de subjetividade, que é a subjetividade esquizo, ela é estrutural do ser humano e está o tempo todo nesse movimento de territorialização, desterritorialização, reterritorialização. Isso compõe a cultura humana, de um modo geral.
Esotu fazendo aqui um apanhado bem rápido, mas só para a gente ter um pouco a dimensão. Qual é a questão deles? A psicanálise é uma ciência vienense, burguesa, do século 19. A psicanálise, essa noção de neurose universal, a psicanálise não compreendeu nada dos processos subjetivos ameríndios, africanos, não ocidentais. E também não compreendeu o processo mais largo da formação dos hominídeos, segundo Deleuze e Guattari. Por quê? Porque está dentro de uma moldura de neurose que é de uma família nuclear, que é a família triangular pai-mãe-filho, a triangulação edipiana, toda essa estrutura criada por Freud. Nos não estamos desmerecendo Freud e a psicanálise, mas Deleuze e Guattari fazem uma crítica muito radical a isso. Eles vão dizer que, do ponto de vista da formação dos hominídeos, se formos ver o devir humano, ele está o tempo todo sendo atuado nesse estilhaçamento, nessa produção, e o desejo humano está o tempo todo produzindo multiplicidade.
Não existe unificação do sujeito. O sujeito está sempre produzindo multiplicidade. Porque a cada momento, o humano cria novas imagens, novas representações, novos deuses, novas divindades, nova arte, novas representações do Unvierso. Ora, então qual é a unidade disso?
A hipótese básica, então, só fechando. O universo pensamento num plano de imanência, ou seja, em constante transformação, não existe nada fixo, plano de consistência é aquilo que dá solidez. O que dá solidez, mesmo essa solidez ela se transforma. Essa transformação é efetiva, ou seja, o próprio mundo é que está se transformando, mas ela é subjetiva, porque o mundo e a subjetividade são a mesma coisa. Essa subjetividade vai operando nesses três momentos, digamos, nessas três etapas (territorializações, desterritorializações e reterritorializações), mas isso é um modo de ser da subjetividade. Então os signos subjetivos vão se disseminando e encontrando outras valências. Por quê? Porque a matriz subjetiva do humano não é a neurose. A matriz subjetiva do humano é a psicose. Psicose não entendida como uma estrutura psicopatológica segundo a psicanálise e a psiquiatria. Psicose entendida como um embaralhamento entre real e imaginário que é estruturante do Homo sapiens e que gerou toda a civilização humana: a arte, o Estado, a política, as representações, tudo. Por quê? Porque essa civilização é feita de multiplicação. O desejo, então, humano, é um desejo que age por multiplicidade. Isso ajuda a gente passar paara outro momento e entender.
Só vou dar aqui um exemplo bem rápido, mas que tem a ver com essa perspectiva de Deleuze e Guattari, que diz respeito ao desejo. Acabei de citar aí outro conceito que é nuclear dentro dessa filosofia, que é o conceito de desejo.
O desejo produz realidade. E o desejo está o tempo todo produzido realidades diferentes. Essa foi a minha frase. Quais são essas realdiades produzidas pelo desejo? Ora, para Deleuze e Guattari, quando o ser humano era nômade, e isso durou bastante tempo, durante 60 mil anos o sapiens foi nômade – de 70 mil anos até 10 mil anos atrás, fomos nômades. Existe aí uma subjetividade nômade. E o sedentarismo tem 10 mil anos. É bastante recente. Aliás, se a gente pensar nossa subjetividade, ela é mais marcada pelo nomadismo do que pelo sedentarismo, porque isso está atavicamente inscrito em nós. A hipótese é que esses hominídeos, esses caçadores-coletores hominídeos, 70, 60, 50, 45 mil anos, quando começa a haver essa dispersão ao longo da Terra, 16 mil anos quando se chega à América, esse movimento nômade, para Deleuze e Guattari, ele configura um tipo de desejo que é o que eles chamam de desejo liso.
O desejo está produzindo diferenciação. Estou produzindo imagens diferentes. Sou um caçador-coletor nas savanas africanas, estou produzindo um imaginário, mas, se eu canto uma música, se eu capturo um animal, se eu observo o céu, eu durmo, eu sonho, não existe uma segmentação, uma separação exatamente entre essas dimensões. O desejo liso, então, é: estou produzindo multiplicidades, porque não tem como não as produzir, porém essas multiplicidades estão sempre, tem um trânsito sutil entre essas multiplicidades. Estou invocando uma entidade animista num momento mesmo em que eu caço, no momento em que eu caço, eu canto, ou seja, a arte está embutida aí. No momento em que eu trabalho, estou também embutido nessa visão animista, “religiosa”. Quando durmo, sonho, mas essas entidades que eu sonho, para mim são reais, elas não são puramente fictícias. Então haveria, no desejo liso, uma conexão entre essas diversas partes. O que começa a haver com o sedentarismo?
Começa a haver o que Deleuze e Guattari chamam de codificação, ou de sobrecodificação, mais especificamente, que é quando esse desejo humano começa a se compartimentar. Então a própria definição de territórios – e aqui estou usando território no sentido literal mesmo -, a criação dos Estados, as primeiras cidades, as fortificações. Uruk, Eridu, Ur, Jericó, ali no crescente fértil, Mesopotâmia, as primeiras cidades, sedentarismo. O que é a cidade? Ela está delimitando, ou seja, o desejo humano está criando algo que já tem uma certa codificação. Tem menos flutuação. As religiões emergem, então temos panteões de divindades, de deuses, deuses tutelares – Ishtar, que é a deusa tutelar de Uruk, e assim sucessivamente. Temos fortificações, temos o controle de organização de produção, aquilo que Marx vai chamar de acumulação primitiva de capital. Nós começamos a ter militarização. A escrita é um modo de compartimentar, de segmentar a experiência humana e de sobrecodificar esse desejo humano, e assim sucessivamente.
O que Deleuze e Guattari estão pensando? Isso não é ruim, obviamente, isso é uma das bases, uma das facetas da civilização, mas essa é uma faceta do desejo, ou seja, uma maneira pela qual o desejo pode se organizar, ou seja, a subjetividade se organizar. O que começa a haver com o mercantilismo a partir dos séculos 17, 18, 19, principalmente hoje com o avanço do capitalismo. Esse movimento de codificação e sobrecodificação começa a se estriar. O desejo humano está numa dinâmica, está produzindo realidades, só que essas realidades começam a se multiplicar e começa a haver um certo embaralhamento dessas realidades, porque o capitalismo, a base do capitalismo é produzir, liberar o desejo e, ao mesmo tempo, capturar esse mesmo desejo que ele liberou. Então a gente começa a viver num movimento do capitalismo, um outro momento que é o que eles vão chamar de axiomatização – um termo meio palavrão, meio feio -, mas a base da axiomatização é quando esse desejo começa a se estriar profundamente. Estriar quer dizer o quê? Que ele começa a ser separado, compartimentado, cada vez mais. Então qual é o grande dilema? O desejo produz multiplicidade, isso é a origem, o centro, a estrutura do sapiens. Nós somos múltiplos, temos muitas vozes dentro de nós, então a alteridade não começa nem na relação com o outro, ela começa já na própria investigação do que nós somos, do que cada um de nós é, somos atravessados e povoados de muitas vozes. Esse é o devir do desejo, só que o capitalismo gera um problema, que é o problema da axiomatização, porque é como se a sociedade, a produção de consumos, de imagens, a produção de objetos novos, é uma forma desejante, uma potência, uma máquina desejante, como dizem Deleuze e Guattari, mas, ao mesmo tempo, começa a gerar o paradoxo, porque ela captura a mesma multiplicação do desejo que seria a liberdade, ou seja, o nosso próprio modo do desejo se dar.
Esse embaralhamento vai gerar vários debates hoje em dia sobre o que é a alteridade, por exemplo. Porque vejam só, se eu participo de um grupo X e esse grupo começa a se multiplicar a partir dos seus signos, de relações, pequenos grupos, tribos, códigos de identificação, quer dizer que o desejo está se multiplicando, e esse é um modo pelo qual também o capitalismo se organiza. Se eu percebo então que não consigo mais ter uma relação com o grupo que é vizinho, é sinal de que esse capitalismo está capturando também esse desejo. Ou seja, é como se a houvesse ali uma cristalização, uma entificação daqueles grupos e daquilo que seria a pluralidade, a multiplicidade do desejo enquanto tal.
Vou retomar um pouco esses conceitos, podem ficar tranquilos, sei que é bastante coisa, mas a gente vai retomar, isso vai ser em espiral. A gente vai voltar a isso quando formos falar do Achille Mbembe, vamos voltar, fazer em espiral, mas aqui o mais importante é a gente pensar no seguinte: a questão do capitalismo, para Deleuze e Guattari, é que não há uma crítica ao capitalismo – eles também considerariam isso uma coisa “naif”, porque não é o capitalismo que emoldura e modela o desejo humano; o desejo humano é que produziu o capitalismo. Só que produziu como uma de suas estruturas ao longo de uma história de 70 mil anos ou mais. E também ao longo da história da própria Terra. Então, a ideia básica é como é possível superar esses dilemas do capitalismo, em que ele gera padrões de vida, gera novos modos de consumo, gera novas subjetividades, novos modos de existência, mas ao mesmo tempo se apropria disso e converte isso numa “coisa”, ou seja, converte isso numa espécie de espectro que reduz a complexidade, ou a diversidade desse desejo que poderia ser expandido.
A gente pode ter vários exemplos disso se a gente pensar propriamente na internet. O que é a internet? É um estilhaçamento de subjetividades e estou falando estilhaçamento nem no sentido negativo, estou falando de que cada um, com seu celular, pode criar sua própria narrativa, pode ter usa própria autoimagem, isso é maravilhoso. A gente não sabe nada da população que construiu as pirâmides porque não há nenhum registro de quem construiu as pirâmides, a não ser os faraós. A população de base não tinha modos de representar a si mesmo. E isso vai até o século 18, até o Antigo Regime, até o século 19, a gente tem muito pouca documentação da base da sociedade. Ou seja, que é a força motora da sociedade. E hoje em dia existe um movimento subjetivo de construção de autoimagem, de narrativas de si.
Esse estilhaçamento é um estilhaçamento esquizo, e é maravilhoso isso, que seja assim, que exista cada vez mais diversidade, cada vez mais capilaridade na sociedade, cada vez mais existem pontos ali mostrando sua própria subjetividade, mas a questão de Deleuze e Guattari é que existe aí um problema também. Porque é possível que cada um de nós comecemos a nos tornar reféns desse estriamento, ou seja, dessa imagem que ela começa a se tornar modelo, ou seja, ela começa a ser um modelo de identidade. Se ela é um modelo de identidade, ela está, no fundo, inviabilizando que eu me torne outro, porque no fundo a única coisa que quero ser é aquele modelo do Instagram, ou aquele modelo daquela pessoa, que eu acho que aquela pessoa é a identidade perfeita. E aí eu evito a minha subjetividade, ela se estria, ela é mutilada, estrangulada, e ela não gera mais diversidade por conta disso.
O que Deleuze e Guattari querem dizer? Existiria uma estrutura molar – um Estado, um Império, um rei -, uma estrutura hierárquica de longa duração. São vários planos de consistência estruturados dentro do Império Chinês, do Império Cristão, que criaram múltiplos planos de consistência e territórios, e o Império Cristão levou quase dois mil anos de um tipo de organização. Um modelo, por exemplo, de uma empresa, pode ter uma estrutura molar. Qual é a questão aí de Deleuze e Guattari para se pensar esse movimento no mundo contemporâneo?
Ora, durante muitos séculos – e até milênios, pensando no sedentarismo -, a molaridade foi central. Porque a estrutura política imperial foi sempre articulada em torno de hierarquia, em torno de constância, em torno daquilo que não muda, percebem? A própria visão da filosofia é uma substância eterna. Isso vai dar ensejo à construção dos impérios. O que é um império? É aquele que cria uma imagem de uma não-mudança, de uma permanência. Não é à toa, as pirâmides, as catedrais, tudo isso que pensamos em termos arquitetônicos, o que é a arquitetura senão algo baseada numa metafísica substancialista. Estou construindo alguma coisa para a eternidade, que não muda. O capitalismo começa a erodir isso, porque ele começa a dissolver essa fixidez e ele mesmo gera essa mobilidade. Só que ele a gera justamente nesse movimento que é um movimento paradoxal. Ele é um movimento que visa uma diversificação, mas essa diversificação pode ser um pouco enganosa.
Uma família é uma estrutura molar. Ou seja, alguma coisa ligada a nós, descendentes, primos dos grandes primatas, que são os mamíferos, nós gostamos e amamos nos relacionar em grupos pequenos. A gente gosta de ter intimidade afetiva. O sapiens consegue ter uma relação de flexibilidade, mas não é tão grande essa flexibilidade no sentido de enquanto mais intensa é a relação que se estabelece. E aí você tem núcleos familiares, que são estruturas molares também. Então quer dizer que são planos, territórios, platôs subjetivos que vão se estruturando dentro de grupos humanos. Desde também dos nômades, eles andavam juntos, pequenos grupos que também são estruturas molares de sobrevivência.
Voltando lá ao primeiro esquema, se Universo é um turbilhão atômico, atomista, se esses átomos estão livres, se tudo ocorre no plano de imanência, se o plano de imanência está em devir – ou seja, em perpétua transformação -, a questão posta por Deleuze e Guattari é que toca a estrutura molar, por mais sólida e eterna que pareça ser, a base dela é molecular. Ou seja, aquilo que é o mais potente na vida não é o fixo, é o móvel. E, sendo móvel, quer dizer que por aí é que caminham os modos, ou aquilo que eles chamam de processo de subjetivação. Então é isso que eles chamam também de agenciamentos moleculares. Agenciamentos moleculares é que eu estou em um casamento, mas o casamento está sendo agenciado molecularmente a cada segundo, a cada hora, a cada dia, a cada mês, a cada ano, porque esse é o modelo básico da estruturação do pensamento e do Universo. E isso é a potência da vida, está aí. A potência ela é sempre gerar a novidade, ou pelo menos de se pensar como as coisas podem vir a ser, e não aquilo que elas são, porque, no fundo, as coisas já são aquilo que podem vir a ser, elas já estão sendo um outro de si mesmas. O mundo em que vivemos já tem uma alteridade, ou seja, já está escoando para outro mundo, só que nós temos essa visão mais estável, ou essa tentativa de nos agarrar nas coisas fixas e acreditar que aquilo é que é a fixidez, que aquilo é que seria o mais efetivo. De uma certa maneira, como se eles virassem de ponta-cabeça a filosofia clássica, toda a solidez, todo o substrato se evanesce, e aí temos que pensar o tempo todo nesse movimento de molecularidade. Esse movimento de molecularidade vai gerar novas consistências, novos planos, mas que bom que há novos planos. Vejam, só para dar o exemplo da religião, que é talvez mais palpável.
Tem um movimento agora, o Gianni Vattimo, um filósofo católico italiano, gay também, então tem uma inscrição muito interessante do Vattimo dentro do catolicismo como filósofo, e ele tem um livro chamado “O Cristianismo Depois da Cristandade”. A cristandade é um modo – a Igreja, as catedrais, o papa, todas as mediações, os sacerdotes, isso é a cristandade -, é a molaridade. O cristianismo não depende da molaridade, o cristianismo pode se molecularizar e pode vir a ser N tipos de cristianismo, e toda essa estrutura pode erodir. Ela já era. Não existe mais. Então isso é uma maneira de pensar, por exemplo, o devir cristão a partir de um modelo de molecularidade. Ou seja, eu permaneço dentro da crença dos valores cristãos, mas eu estou pensando os valores cristãos a partir do que Deleuze e Guattari chamam de linha de fuga.
A linha de fuga é uma espécie de fratura na realidade, uma fissura, um ponto pequeno para onde a realidade, a subjetividade escoa em direção ao futuro. A linha de fuga é esse escoamento, essa fissura que vai produzindo a liberdade dos átomos, para que eles se reconfigurem, para que gerem novos diagramas, novos territórios, novas territorializações, novas desterritorializações, novas reterritorializações, se solidifiquem em planos de consistência para gerarem novos mundos. E para que esses novos mundos sejam gerados, é preciso haver, então, um conceito central na filosofia de Deleuze e Guattari, é esse conceito de aberto.
O aberto é o ponto propiciador, é o lugar – se é que a gente pode chamar de um lugar – por onde a realidade escorre em direção ao futuro. O aberto é aberto porque não é circunscrito, não tem limites, não tem bordas, porque é todo mundo que pode ser transformado e pode ser alterado e reconfigurado, recodificado, embaralhado, reterritorializado, desterritorializado e assim sucessivamente.