Psicanálise e literatura: uma amizade
Por Ana Suy
Vocês sabiam que em 1930 Freud ganhou o prêmio Goethe de literatura? Como ele já estava doente e se sentia fraco, foi sua filha, Anna, quem foi para Frankfurt recebê-lo. Se Freud viu a psicanálise se espalhar pelo mundo, ainda em vida, certamente teve a ver com sua brilhante relação com a literatura. Me refiro, aqui, tanto ao fato de Freud escrever muitíssimo bem, quanto ao fato de ele reconhecer na arte um saber que antecipava o saber da psicanálise e ilustrar isso com inúmeras citações e trabalhos com Goethe, Leonardo da Vinci, Shakespeare, Hoffmann, Jensen, dentre tantos outros.
No texto “Escritores criativos e devaneios” Freud discorre sobre as nobres habilidades dos escritores de dizerem de fantasias, desejos e acontecimentos que comumente nos causariam repulsa. Mas, nas palavras dos poetas, ganham um tratamento estético, de modo que chegam para nós como sendo agradáveis. Nesse sentido, penso que uma análise psicanalítica se aproxima bastante do fazer literário. Em uma análise falamos dos nossos sofrimentos, confessamos nossos erros, descobrimos culpas soterradas… conteúdos que foram recalcados e distanciados da nossa consciência justamente por serem repulsivos. Não é por acaso que não há análise sem resistência. Ao mesmo tempo que o analisante quer avançar e quer se curar, também tem horror às coisas que tem para dizer.
Se uma análise caminha bem, no entanto, o que acontece é que esse texto tão dito e repetido nas sessões, vai ganhando outras formas e, com isso, seu próprio conteúdo é alterado. Não se trata, é claro, de inventar coisas que não aconteceram. Mas mudar o modo de dizer algo, pode ter como consequências mudar o modo de sentir algo. E não se trata de uma mudança forçada ou sugerida por alguém, mas de uma mudança que é descoberta na própria análise, uma mudança que é única, impossível de ser replicada. Assim como um texto ou uma obra de arte também não são passíveis de replicação.
Uma análise, tal como a literatura, é uma experiência de linguagem. Tal como lemos um livro e podemos chorar, rir, sentir raiva, nos identificar e até mudar a vida por causa de uma história – também uma análise é um lugar onde faz-se isso tudo, apenas usando as palavras.
Ao contar de uma experiência difícil vivida há três décadas, podemos nos emocionar porque recriamos a experiência, trazemos o passado ao presente, modificando algo dele a cada vez. Na psicanálise e na literatura passado, presente e futuro se entrelaçam, um alterando o outro.
No documentário “Encontro com Lacan” Susanne Hommel, uma mulher judia que viveu a Segunda Guerra, conta um fragmento de sua análise com Lacan. Nele, Susanne diz de uma sessão onde um ato de seu analista muda a sua vida. Ao dizer em análise do horror que sentia todos os dias, acordando às cinco da manhã assustada, (o horário em que a Gestapo invadia as casas perseguindo os judeus), Lacan levanta-se da poltrona e acaricia o rosto dela, transformando “gestapo” em “gest a peau” (que significa “gesto na pele”, no francês). Susanne conta, com isso, que o ato de Lacan não eliminou o horror que ela sentia às cinco da manhã, mas inscreveu via linguagem em seu corpo, também o que ela chamou de “uma aposta na humanidade”.
Se a psicanálise tem seus limites, é isso que a funda, pois não se trata de voltar no tempo e alterar o rumo das coisas. Também não se trata de eliminar todo o sofrimento da vida ou curar alguém de sua história. Trata-se de encontrar naquilo que se viveu algo onde cada um de nós tenha podido apostar, e por ali se orientar. Também a literatura, tal como a psicanálise, não pretende eliminar o mal, tornar a vida asséptica ou responder a todas as coisas – como parecem querer fazer quase tudo em nosso mundo contemporâneo.
Por isso, psicanálise e literatura fazem uma amizade tão fértil, são duas maneiras de encontrar ou criar dignidade mesmo em meio ao sofrimento humano – ou melhor, justamente por causa dele.