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Literatura - 25 de out

Por que ler os clássicos?

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Por Guilherme Peres

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Na última semana o mundo (ao menos parte dele mais envolvida com a literatura) lembrou o centenário do escritor italiano Ítalo Calvino. Autor não apenas de histórias mágicas, em todos os sentidos, como “Se Um Viajante numa Noite de Inverno” ou “Cidades Invisíveis”, mas também de uma série de definições sobre a ideia de clássico, publicadas em “Por Que Ler os Clássicos” (quase um manual de referência para esta pergunta cíclica que dá título a esse texto).

Não pretendo resgatar aqui todas, já que a leitura de Calvino é um privilégio por si mesma (e acessível), mas me valer de algumas de suas propostas para um contexto mais particular, específico, passadas mais de três décadas da publicação de seu livro. Há um fio possível que atravessa as diferentes definições.

Ele nos propõe ali que o clássico é todo aquele livro que nunca deixa de nos contar algo novo a cada releitura, mas que também nos conta algo que já sabemos (ou supomos saber) já no primeiro contato. É um que se inscreve no tempo e “nas dobras da memória”, imitando uma (in)consciência compartilhada - coletiva, por que não? É toda aquela história da qual não podemos prescindir, porque nos ajuda a entender quem somos, como chegamos até aqui e que, por mais que não ofereça, necessariamente, respostas diretas aos impasses do cotidiano, dá a eles um sentido no longo tempo histórico.

De forma bem humorada, Calvino encerra o prefácio afirmando que não se deve entendê-los, os clássicos, a partir de uma suposta serventia, mas sim que vale mais a pena lê-los do que deixá-los de lado. Conta, ainda, uma história de que Sócrates estava aprendendo uma ária para a lira momentos antes de beber a cicuta que marcou a radicalidade de seu compromisso. Para quê? “Para aprendê-la antes de morrer”.

Ainda outro ponto dos argumentos de Calvino: só se pode ler os clássicos por amor, não por dever - ainda que uma série deles faça parte de um currículo básico que a maior parte de nós (mas não todos) atravessa. A leitura por dever exerce uma função de trabalhar recursos de interpretação e escolhas: em contato com outras perspectivas, com dramas de terceiros (que podem ser os nossos também), tornamo-nos mais aptos a realizar operações fundamentais, ainda que pouco se pense ou diga sobre elas, como nossa capacidade de identificar, nomear e trabalhar nossos afetos, ou estabelecer conexões de escuta, empatia e diálogo autênticos com a diferença, por exemplo.

Estes elementos têm um papel fundamental e que se manifesta numa camada muito sutil da existência. Numa época afeita à valoração de experiências muito imediatas, intensas e compartilháveis, a literatura e os clássicos têm aí um desafio talvez intransponível e irrespondível (porque talvez não seja sua tarefa, aliás, resolvê-lo e respondê-lo, mas ser exatamente um contrapeso ao utilitarismo vazio dessa lógica).

Os clássicos são parte do que nos insere numa dimensão coletiva e compartilhada, simbólica e concreta, a partir da qual, como consequência, aquilo que acostumamos a chamar de Eu se desenvolve e passa a conhecer melhor a si mesmo. A essa dimensão talvez possamos dar o nome de “cultura”. Por si só, os clássicos não necessariamente nos fornecem um ferramental prático, ou uma lista de valores que devemos seguir para desvendar o mito da “boa vida”. Eles nos apresentam e nos participam as narrativas, personagens, imagens, embates, questões que nos constituem, quer queiramos ou não, gostemos ou não, de forma muito íntima e subjetiva, mas também social. Eles nos capacitam a compartilhar e nos proporcionam acolhimento, para que no trato com a diferença (que nós mesmos representamos, vez ou outra, em nossos estrangeirismos dentro de contextos até mesmo familiares), possamos receber e deixar ir aquilo que pede abrigo ou espaço.

Não há como dourar a pílula: a resposta à pergunta “por que ler os clássicos?” tem uma dimensão muito particular. Um movimento inicial muito particular. Estamos acostumados a pensar a categoria “indivíduo” como o ser detentor da liberdade que é sempre ameaçada pelo fantasma do coletivo. Ao mesmo tempo em que somos seres sociais e que demandamos dessa sociedade uma “ética” que é, por definição, relacionada ao comum. Parece se criar aí uma ilusão de que essas duas coisas sejam inconciliáveis. Porém a literatura nos salva de nós mesmos, mais uma vez.

Em seu artigo “Importante, Desimportante: Alice no País das Maravilhas como antecipação crítica das premissas do positivismo de Kelsen”, o professor José Garcez Ghirardi nos lembra que a literatura “tem liberdade e é capaz de misturar (como na vida real) os vários elementos que a teoria pura precisa manter separados”. Por isso ela é algo valioso para nos apresentar os dilemas e contradições que só depois serão tomadas como problemas coletivos. Mais que isso, lembro aqui do argentino Jorge Luís Borges no ensaio “Magias Parciais de Quixote”:

Por que nos inquieta que o mapa esteja incluído no mapa e as mil e uma noites no livro das Mil e uma Noites? Por que nos inquieta que Dom Quixote seja leitor do Quixote e Hamlet espectador de Hamlet? Creio ter encontrado a causa: tais inversões sugerem que, se os personagens de uma ficção podem ser leitores ou espectadores, nós, seus leitores ou espectadores, podemos ser fictícios.

Os clássicos fazem parte de nós, nós deles, e ambos de uma história que lemos, descobrimos, construímos e nos inscrevemos. Espero que você encontre suas próprias razões e seu próprio ímpeto de ler os clássicos. Que a partir disso, construa também, como recomenda Calvino, a sua própria biblioteca de clássicos particulares.

Para você que se pergunta "como começar a ler os clássicos?", a Casa do Saber tem uma série dedicada a alguns títulos centrais do cânone. Sobretudo, escolha um e comece. E insista. E avance.

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Guilherme Peres

Especialista de conteúdo e curadoria da Casa do Saber. Jornalista, pós-graduado em globalização e cultura (FESPSP) e pesquisador da Cátedra Otávio Frias Filho de Estudos em Comunicação, Democracia e Diversidade (IEA-USP e Folha de S. Paulo).

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