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Filosofia - 21 de mar

Novos passados, novos futuros

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Por Guilherme Peres

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Como é sua relação com o passado? Ela te define? Te movimenta? Como conciliar um futuro comum - um “nós”, uma primeira pessoa do plural - sem abrir mão da individualidade, esse recorte tão caro ao nosso modo de existir?

Há uma tradição que coloca o passado diante de nós como um oráculo em posse de mensagens cifradas que contêm as chaves do presente. Olhamos para ele como um repositório de experiências que, em conjunto, podem apresentar padrões e oferecer pistas sobre as direções de nossos labirintos.

Antônio Bispo dos Santos, em “Colonização, Quilombos: Modos e Significações” (2015), coloca uma questão fundamental: como definir onde começam e terminam o passado e o presente e onde começa o futuro? Ali, nas primeiras linhas, afirma que aquela obra se coloca como “interlocutora do passado e, consecutivamente, locutora do futuro”. Como essas ideias se relacionam e se diferenciam dos sentidos comuns das ideias de passado e memória?

Um dos perigos do que se pretende “universal” é conferir esse título a elementos de um universo muito restrito. A própria ideia de “humanidade” e “humano”, como lembra Muniz Sodré (2017), surge “de dentro para fora”, fruto de uma mentalidade que reconhece a si mesma como dotada de uma plenitude racional que o diferente não possui. Da mesma forma a filosofia, as artes, a ciência, as universidades que, edificadas à sombra dessa mentalidade, veem-se às voltas com a disputa entre a pretensa relação com “a verdade” e a sua funcionalidade dentro de um sistema de ideias e influências que as legitimam. Mais uma vez lembrando de Bispo (2023), “se para os humanistas o ‘um’ é o universo, para nós só há ‘um’ porque há mais de um”.

Isso significa ultrapassar uma noção de indivíduo preocupado (quase que) exclusivamente com o uso privado da memória e do passado. Inseridos em um modo de vida - e de reprodução da vida - que se desdobra em ansiedade, insegurança e incerteza, a relação com o passado vai se tornando utilitária e funcional. Buscamos nas experiências anteriores, nos tropeços de cuidados e desamores das relações, nas expectativas e sonhos frustrados os pontos de virada, como se fosse possível examinar a si como um gráfico e determinar que aqui e ali tornamo-nos ou deixamos de ser quem somos.

Os laços com o comum se desfizeram e é difícil dizer se algum dia eles existiram firmemente. Não se trata de um olhar idealizado para uma origem idílica, buscando esse limiar de não retorno, mas de formas possíveis de ressignificar essa relação com o que nos precedeu. Se a memória, como falamos, não é um repositório onde buscamos os registros de experiências, mas uma constante recriação desses registros ao sabor do presente, pode ser possível reconhecer “novos passados” e enriquecer coletivamente nossa experiência do agora e do que virá. Quem sabe a desesperança latente em relação ao futuro não diminua no encontro com registros diferentes daqueles que estamos habituados - e que, convenhamos, vão dando sinais de esgotamento. Essa forma de pensar pode dar fôlego às relações que estabelecemos para além daquelas com o tempo que passa e não volta. Na ideia de ancestralidade, por exemplo, alguém cujo ciclo de vida se encerrou permanece vivo se for lembrado pelos que permanecem, se suas ideias e ensinamentos forem transmitidos adiante. A linearidade do tempo parece empobrecida frente à potencialidade de perpetuação de diferentes experiências que não têm como objetivo se aniquilar, ou se sobrepor umas às outras, mas, ao contrário, se complementar - ou “confluir”, como rios que se encontram e se juntam, e permanecem si mesmos sendo também outros.

Nós nos relacionamos com o mundo de formas para além de passivas. Somos maquínicos, capazes de inventar e alterar o mundo físico, até mesmo os próprios esquemas e sistemas nos quais vivemos e nos reproduzimos, e a partir dos quais aprendemos o que é possível pensar e fazer. Restringir a experiência da vida ao ponto autocentrado do Eu parece um esvaziamento do que ela pode significar, além de um desvio de atenção para onde podem estar as respostas que são buscadas há séculos. Vamos tentar delinear as fronteiras da mente e da alma em uma região específica do cérebro humano? Ou buscar entender suas diferentes manifestações e configurações na complexidade e diversidade de um todo que seja menos autorreferenciado?

Talvez aquilo que se classifique como inexplicável e inconcebível sejam mais denúncias da insuficiência de nossas ferramentas para lidar com a realidade do que uma qualidade da realidade em si. Pensar o novo não significa prescindir do antigo, pelo contrário, mas também não se realiza quando nos prendemos a ele de forma determinista, numa lógica binária que não enxerga o que se coloca para fora do imediato. As interações entre as coisas do mundo geram efeitos para além da previsibilidade ou controle que adoramos ter, que precisamos ter, nessa ânsia de concretizarmos os projetos de nossos desejos e promessas. No meio disso tudo, a vida se vai, esquecendo-se de si.

Referências:

Antônio Bispo dos Santos. Colonização, Quilombos: Modos e Significações. UnB, 2015.

Antônio Bispo dos Santos. A terra dá, a terra quer. Ubu, 2023.

Muniz Sodré. Pensar Nagô. Vozes, 2017.

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Guilherme Peres

Especialista de conteúdo e curadoria da Casa do Saber. Jornalista, pós-graduado em globalização e cultura (FESPSP) e pesquisador da Cátedra Otávio Frias Filho de Estudos em Comunicação, Democracia e Diversidade (IEA-USP e Folha de S. Paulo).

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