Nietzsche | Parte 8
Por Scarlett Marton
Aviso: este material é uma transcrição do curso “Nietzsche”, realizado pela Casa do Saber e pela professora Scarlett Marton. Por se tratar de uma transcrição, as frases não seguem necessariamente uma ordem ou linha de raciocínio semelhante às de um texto escrito.
Transvaloração de todos os valores e amor fati
A filosofia nietzschana possui uma dupla vertente. De um lado a vertente corrosiva da sua critica dos valores, com a noção de valor e o procedimento genealógico; de outro, a vertente construtiva, da sua cosmologia, da sua concepção do mundo, com o conceito de vontade de potência, a teoria das forças e a doutrina do eterno retorno do mesmo.
Para elaborar a sua cosmologia, Nietzsche recorreu a estudos científicos, embora ele mesmo não fosse um homem de ciência. Assim, para chegar a conceber o seu conceito de vontade de potência, ele lançou mão de estudos biológicos. Para construir sua teoria das forcas, se serviu de escritos de física e para elaborar o pensamento do eterno retorno do mesmo, na verdade, ele chegou a pensar em voltar à universidade em Viena ou Paris, para dar a esse seu pensamento um fundamento cientifico. Isso significa que essa vertente construtiva da filosofia nietzschana é, de certa forma, datada. Temos aí um Nietzsche pensador da segunda metade do século 19, envolvido com os debates científicos da sua época. Não é o mesmo que ocorre com a vertente corrosiva da sua obra, que se apresenta, por exemplo, na crítica dos valores estabelecidos, ou então na critica ao animal gregário, ao reino do espírito de rebanho que, no fim das contas, nada mais é do que a crítica à massificação. Critica essa que antecipará os ataques à indústria cultural feitos pelo estudiosos da Escola De Frankfurt, no século 20.
Crítica dos valores vigentes, crítica da massificação, também a psicologia do desmascaramento. Nietzsche é ímpar quando se trata de sondar o coração do ser humano para lá descobrir os móveis secretos que levam o homem a agir, pensar e sentir de uma determinada maneira; para lá descobrir os motivos inconfessados do seu pensamento, da sua ação. E como nós não poderíamos deixar de lembrar, a análise percutante, perspicaz, que Nietzsche faz do fenômeno do ressentimento - uma das descobertas filosóficas mais importantes dos últimos tempos.
Ressentimento esse que nós vemos expresso cotidianamente na nossa sociedade, por aqueles que, tendo uma determinada posição, receiam outras camadas sociais que possam vir a granjear a mesma posição e a elas devotam ódio e espírito de vingança.
Quando se trata da vertente corrosiva, da vertente crítica da filosofia nietzschana, o nosso filósofo é extremamente atual. Para usar uma palavra que ele tanto aprecia, trata-se de um extemporâneo, ou seja, de um pensador que vai além da sua própria época.
Essas duas vertentes da filosofia nietzschana são, na verdade, duas faces de uma moeda, duas faces da mesa moeda. Por isso, é descabido dizer que Nietzsche é pensador niilista. Passemos a palavra a ele num fragmento póstumo, o 16 (32), da Primavera/Verão de 1885:
“Uma filosofia experimental, tal como eu a vivo, antecipa experimentalmente até mesmo as possibilidades do niilismo radical; sem querer dizer com isso que ela se detenha em uma negação, no não, em uma vontade de não. Ela quer, em vez disso, atravessar até o inverso - até um dionisíaco dizer-sim ao mundo, tal como é, sem desconto, exceção ou seleção”.
Niilista, no entender de Nietzsche, é o cristianismo. Niilista porque despreza este mundo, esta terra, esta vida, em nome de um outro mundo, de uma outra vida. Despreza o corpo em nome da alma. Mas a esse niilismo, representado pelo cristianismo, se seguiu um outro que Nietzsche testemunhará na sua época. Trata-se no niilismo suicida, ou seja, com a derrocada dos valores cristãos, se começou a pensar que nada valia a pena, que tudo era em vão. Ora, Nietzsche dirá que não é porque a interpretação cristã do mundo entrava em decadência, que não era possível criar uma outra interpretação do mundo, sem dúvida mais saudável do que a cristã. O propósito de Nietzsche consiste precisamente em procurar dar um novo sentido à existência humana - e é nisso que consiste o seu projeto de transvaloração de todos os valores.
Transvalorar é, antes de mais nada, destruir ídolos, demolir alicerces, dinamitar fundamentos. Ou seja, transvalorar, antes de mais nada, é fazer uma critica radical, do solo mesmo a partir do qual os valores foram engendrados. É a ideia, como você deve estar lembrado, do Deus cristão, este deus sumamente bom, o bem associado a uma outra esfera, a um outro mundo, tendo uma outra origem, tendo uma origem divina. A frase de Nietzsche “Deus está morto” é a frase que vem marcar, precisamente, esse primeiro aspecto da transvaloração de todos os valores. Ou seja, aqui Nietzsche pretende fazer uma obra análoga à dos iconoclastas, criticando duramente o dualismo de mundos e a moral do ressentimento.
Transvalorar é, também, inverter os valores - ou melhor, virar do avesso os valores. Nietzsche pretende, então, fazer uma obra análoga à dos alquimistas: transformar em ouro tudo que foi até então odiado pela humanidade. É dessa perspectiva que Nietzsche combaterá os ideais que nos afastam da realidade e que nos impedem de ver o mundo e a vida tal como eles são. Aliás, em relação a esse ponto, esse segundo ponto, valeria a pena trazer a expressão original Umwertung aller Werte. No substantivo Umwertung, o prefixo Um guarda em si também essa conotação de "inversão", de "virar pelo avesso".
Por fim, um terceiro aspecto da transvaloração de todos os valores. Querendo realizar uma obra análoga à dos legisladores, Nietzsche pretende criar valores, portanto, novos valores. Esses valores estarão em consonância com o corpo, com a vida, com a terra. À diferença dos valores estabelecidos que privilegiavam a alma em detrimento do corpo, que privilegiavam a outra vida em detrimento dessa, o além em prejuízo deste mundo.
O empreendimento nietzscheano consiste, então, em uma tentativa de retomar as rédeas do destino da humanidade. Se a civilização ocidental fez do ser humano um animal doente, Nietzsche pretende agora, dando um novo sentido à existência humana, converter o homem num animal sadio e bem-logrado. E quem é sadio e bem-logrado afirma, de maneira incondicional, a própria existência. E para concluir, eu gostaria e trazer ainda uma noção muito preciosa do pensamento nietzscheano: a noção de amor fati.
Amor fati é uma expressão latina que significa “amor ao destino”, amor ao fatum. Mas, na verdade, precisamos tomar cuidado. Não se trata do destino, aquele pensado pela religião cristã: "Deus escreve certo por linhas tortas", "nós não conhecemos os desígnios divinos" e daí por diante. A concepção que Nietzsche tem de destino é inteiramente outra. Você está lembrado, nós havíamos dito, em um encontro anterior, que o ser humano faz parte do mundo e a ele pertence. Portanto, de alguma forma, nós criamos, também, o nosso próprio destino. A respeito do amor fati, Nietzsche escreverá, em seu livro “Ecce Homo”, nessa sua quase autobiografia de 1888:
“Minha fórmula para a grandeza do homem é a_mor fati_: não querer nada de outro modo, nem para adiante, nem para trás, nem em toda eternidade. Não meramente suportar o necessário, e menos ainda dissimulá-lo, mas amá-lo.”
E mais uma vez nós voltamos a essa ideia, a ideia de afirmar incondicionalmente a nossa própria vida. Afirmar a nossa vida tal qual como ela é, é afirmar essa vida sem desconto, exceção, ou seleção. É a afirmar tudo aquilo que a vida nos propicia de mais alegre e exuberante, mas também de mais terrível e doloroso.
Ser capaz de aceitar amorosamente tudo o que a vida nos propõe é o que eu desejo a você.