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Nietzsche e sua mãe, Franziska
Filosofia - 07 de fev

Nietzsche | Parte 5

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Por Scarlett Marton

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Aviso: este material é uma transcrição do curso “Nietzsche”, realizado pela Casa do Saber e pela professora Scarlett Marton. Por se tratar de uma transcrição, as frases não seguem necessariamente uma ordem ou linha de raciocínio semelhante às de um texto escrito.

O bem, o mal, os fortes e os ressentidos

Ao introduzir a noção de valor, Nietzsche inaugura o procedimento genealógico, que consiste em um duplo movimento, dois movimentos inseparáveis. Trata-se, por um lado, de relacionar os valores com avaliações e, do outros, de relacionar essas avaliações com valores. O que significa tudo isso?

Vimos que Nietzsche entende que os valores não são essenciais, imutáveis, eternos. Os valores são humanos, demasiado humanos. Ou seja, eles foram criados, inventados, estabelecidos, em algum momento, em algum lugar. Relacionar os valores com avaliações é relacionar os valores com o momento e o lugar em que eles foram estabelecidos, ou seja, quem os estabeleceu. O termo avaliação está num sentido técnico muito nietzscheano. Avaliação significa ponto de vista, perspectiva avaliadora. Relacionar os valores com avaliações significa, portanto, relacionar os valores com o ponto de vista daqueles que os estabeleceram. Esse é o primeiro movimento do procedimento genealógico. Mas o procedimento genealógico tem um segundo movimento: trata-se de relacionar essas perspectivas avaliadoras com valores. Pois, quando se estabelecem os valores, eles são estabelecidos de diferentes pontos de vista que não se equivalem. É possível que um desses pontos de vista seja mais valioso que outro para o prosperar da humanidade. Em uma passagem de “Para Além de Bem e Mal”, parágrafo 260, Nietzsche escreve: “Em uma perambulação através das muitas morais, mais refinadas e mais grosseiras, que até agora dominaram sobre a terra ou ainda dominam, encontrei certos traços retornando juntos regularmente e ligados um ao outro; até que, por fim, dois tipos fundamentais se denunciaram a mim, e ressaltou uma diferença fundamental. Há moral de senhores e há moral de escravos.”

Em outros textos de Nietzsche vamos encontrar “moral dos fortes e dos fracos”, “moral dos fortes e dos ressentidos”. De modo geral, essas três formulações se equivalem, mas é preciso chamar atenção para o fato de que quando Nietzsche escreve “moral dos nobres e moral dos ressentidos”, ele não está pensando num receituário, ele não está pensando num decálogo, como, por exemplo, o que nós encontramos no Antigo Testamento. Na verdade, se trata aqui com o tempo moral de designar precisamente essa perspectiva avaliada. É a perspectiva avaliadora dos nobres que coloca certos valores, assim como será a perspectiva avaliadora dos ressentidos que estabelecerá outros valores.

Desde já, vale a pena um esclarecimento: Não se pode ler Nietzsche com os óculos do marxismo. Quando Nietzsche fale em nobres, isso nada tem a ver com uma classe social. Tem a ver, isso sim, se nós quisermos, com uma casta, mas uma casta que existiu na Grécia Antiga, nos tempos homéricos. Portanto, século 9º a.C. Nietzsche pensa aqui na aristocracia guerreira dos tempos homéricos. Muito bem, vamos agora passar para o primeiro movimento do procedimento genealógico: relacionar os valores com as avaliações.

A aristocracia guerreira coloca inicialmente o valor Bom, que atribui a si mesma. Os nobres dizem “Nós, os bons, os belos, os felizes”. Portanto, esse valor “Bom” é fruto de um movimento de autoafirmação. Só depois, como uma pálida imagem contraste, os nobres vão designar como ruins aqueles que não pertencem à casta, aqueles que não são guerreiros, aqueles que são incapazes de lutar. E assim, relacionamos bom e ruim, com a moral dos nobres.

E a outra moral? A moral dos fracos, dos escravos, dos ressentidos? Eles procedem de uma maneira completamente diferente. Eles começam por designar aqueles que são mais fortes do que eles como Maus. Se eles são maus, se os outros são maus, então, dirão os ressentidos, somos Bons. Isso significa que o primeiro valor colocado pelo ressentimento é o valor Mau. Isso significa também que os ressentidos não criam propriamente valores, mas se limitam a inverter os valores colocados pelos nobres, porque o Mau, da moral do ressentimento, é o Bom da moral dos nobres. Ódio e desejo de vingança são palavras-chave da moral dos ressentidos.

O ressentimento, a meu ver, foi uma das descobertas filosóficas mais importantes do final do século 19 e de todo o século 20. Uma das descobertas filosóficas mais importantes ate hoje. O ressentimento, na verdade, nós podemos constatá-lo até mesmo na nossa sociedade. Na vida cotidiana. Ressentido não é apenas aquele que não tem e que gostaria de ter e, por isso, pode eventualmente vir a odiar aqueles que possuem. Ressentidos são, sobretudo, aqueles que possuem e que não querem que os despossuídos venham igualmente a possuir. Porque o ressentimento não diz respeito às coisas materiais, diz respeito sobretudo às posições sociais.

Uma passagem da “Genealogia da Moral” ilustra bastante bem as duas morais que acabamos de falar. Parágrafo 10 da Primeira Dissertação. Nietzsche escreve:

“O levante dos escravos a moral começa quando o ressentimento mesmo se torna criador e pare valores: o ressentimento de seres tais, aos quais está vedada a reação propriamente dita, o ato, e que somente por uma vingança imaginária ficam quites. Enquanto toda moral nobre brota de um triunfante dizer ‘sim’ a si próprio, a moral de escravos diz ‘não’ logo de início. A um fora, a um outro, a um não mesmo, e esse não é seu ato criador.”

Como nós vimos, então, os ressentidos agem através do ódio e do desejo de vingança. Mas as diferentes morais, essas diferentes perspectivas avaliadoras e diferentes avaliações, precisam ser relacionadas também com valores. Ou seja, precisam ser avaliadas. Haveria algum sentido em dizer que a moral dos nobres é melhor que a dos ressentidos? Mais Boa, do que a moral dos ressentidos? Certamente, não. Imediatamente você me diria: mas de qual bom você está falando? Do colocado pelos nobres ou do colocado pelos ressentidos? Nós vimos que o valor bom, colocado pelos nobres, é fruto de um movimento de autoafirmação, enquanto o valor Bom, colocado pelo ressentimento, é resultado de um movimento de oposição e negação. Isso significa que os valores que foram colocados pelas perspectivas avaliadoras não podem servir para avaliar essas próprias perspectivas avaliadoras. Nós temos que encontrar um critério de avaliação que não possa ser avaliado por ele mesmo. Esse critério de avaliação, Nietzsche nos fornece, por exemplo, no “Crepúsculo dos Ídolos”, capítulo “O problema de Sócrates”, parágrafo 2:

“É preciso estender os dedos completamente nessa direção e fazer o ensaio de captar essa assombrosa finesse - de que valor da vida não pode ser avaliado.”

A vida, então, será o único critério de avaliação que não pode ser avaliado. Nietzsche, nós sabemos, escreveu sobre os mais diversos assuntos, explorou os mais variados temas, acontecimentos históricos, doutrinas politicas, movimentos artísticos foram objeto do seu exame. Em relação a todos eles, a pergunta que Nietzsche colocou foi sempre a mesma: contribui para a expansão da vida ou para sua degeneração? Essa é a pergunta genealógica por excelência. E o que é a vida? Isso veremos no próximo encontro.

Sugiro que você leia dois textos textos para o próximo encontro: “Assim Falava Zaratustra”, Segunda parte, o discurso intitulado “Da superação de si” Fragmento póstumo 38 (12) - Junho/Julho de 1885.

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Scarlett Marton

Scarlett Marton é uma das maiores especialistas na obra de Friedrich Nietzsche. Mestra em Filosofia pela Université Paris I Sorbonne e doutora em Filosofia pela Universidade de São Paulo, possui doze livros publicados, sendo dez desses sobre o pensador alemão. Suas obras são referências mundiais, sendo publicadas em países como Alemanha, França, Áustria, entre outros. Também é fundadora e coordenadora do GEN - Grupo de Estudos Nietzsche e faz parte da direção do GIRN - Groupe International de Recherches sur Nietzsche.

Cursos com Scarlett Marton

Nietzsche: Vida, Obra e Legado
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