Nietzsche | Parte 4
Por Scarlett Marton
Aviso: este material é uma transcrição do curso “Nietzsche”, realizado pela Casa do Saber e pela professora Scarlett Marton. Por se tratar de uma transcrição, as frases não seguem necessariamente uma ordem ou linha de raciocínio semelhante às de um texto escrito.
Zaratustra e o Além-do-homem
Comecemos então com “Assim falava Zaratustra”. Na primeira página do livro, o protagonista central encontra-se na sua caverna, com seus animais, a águia e a serpente, no alto da montanha. Certa feita, na aurora, saindo da caverna, ele se dirige ao Sol dizendo: “Ó tu, grande astro, que viestes todos os dias me iluminar e iluminar minha morada. Assim como tu, eu sinto necessidade de presentear e partilhar. A minha taça transbordou de sabedoria e por isso vou descer para o vale para ir ter outra vez com os homens”.
Nesse seu percurso em direção ao vale, Zaratustra encontra um ermitão que vive no bosque e um diálogo se estabelece entre eles. O ermitão diz: “Conheço este andarilho, ele passou por aqui há dez anos rumo ao alto da montanha.. O que ele vai fazer agora na cidade?”
Zaratustra responde: “Eu amo os homens”. E o ermitão então lhe diz: “Não, eu não amo os homens, eu amo só a Deus, por isso me refugiei aqui no bosque”, e entoou cantos ao seu dispor.
Eles se despedem. Zaratustra diz ao seu coração: “Esse santo homem ainda não ouviu a boa nova. Ele ainda não sabe. Deus está morto.”
Essa frase, “Deus está morto”, foi objeto de várias interpretações. A mais corrente é de que Nietzsche estava, sim, pregando o ateísmo. Mas Nietzsche não escreve “Deus não existe”, ele não está tratando da existência ou da inexistência de Deus. O que ele esta fazendo é declarar que Deus está morto. E que Deus é esse? É o Deus sumamente bom do cristianismo, essa divindade a qual está associada à ideia de Bem, ideia que nós já encontrávamos em Platão, quando Platão havia colocado a ideia de Bem no ápice do mundo das ideias. Como se o Bem fosse essencial, imutável e eterno. Mas continuemos com o percurso de Zaratustra.
Chegando a cidade, Zaratustra encontra o povo reunido na praça do mercado. Estava ali o povo reunido à espera das acrobacias de um saltimbanco, queriam ver um espetáculo. Mas, Zaratustra toma a palavra e diz: “Eu os ensino o além-do-homem”. Veja que curioso: Deus está morto e eu os ensino o além-do-homem. Essas duas ideias estão estreitamente relacionadas, mas, antes de falar delas, eu gostaria de me deter um momento e trazer aqui o vocábulo “além-do-homem”. Essa é uma tradução, e na minha opinião, a melhor delas, para o termo original Übermensch.
Essa palavra é composta de um prefixo: Über (“ir além”, no sentido horizontal). E por Mensch, que significa “ser humano”. Usamos, também, em alemão, a palavra Über no vocábulo Überqueren, que significa “atravessar”, seja uma rua, uma ponte, portanto, horizontalmente. Übermensch foi traduzido várias vezes, e infelizmente, por “super-homem” e isso nos causa um problema. O “super” nos aponta para uma verticalidade, uma superioridade. Na verdade, os ideólogos se aproveitaram dessa interpretação de Übermensch para se tornarem defensores da raça ariana como sendo uma raça superior. O Übermensch nietzscheano nada tem a ver com uma raça superior, pois nada tem a ver com o “super” e com a superioridade. Além-do-homem porque é preciso continuar caminhando. Portanto, essa noção nietzscheana central vem nos trazer a ideia de que a concepção mesma que temos de ser humano precisa se transformar. Se Deus está morto, então Deus desaparece como criador e o homem como uma criatura sua. O homem não é um ser criado por Deus: se desaparece o criador, desaparece a criatura necessariamente. O além-do-homem agora vai nos apresentar um ser humano que é criatura e criador de si mesmo, porque um ser humano que cria valores, em que o Bem não está no além como ideia eterna, imutável e essencial. O Bem é um valor, um valor que pode vir a orientar a nossa conduta. Mas o que nós entendemos por Bem aqui, e agora, século 21, no Brasil, não é necessariamente o que entenderam por Bem, por exemplo, no século 17 na França, ou que entendem por Bem ainda hoje em um outro ponto do nosso planeta.
Pascal, um pensador francês do século 17 a quem Nietzsche quer muito bem, por quem ele tinha grande apreço, dizia: “Divertida justiça essa que o rio limita. Verdade aquém dos Pirineus, erro além”. Ou seja: verdade no lado francês, erro para o lado espanhol. Valores são criados pelo ser humano. Os valores são humanos, demasiado humanos. Ao introduzir a noção de valor, então Nietzsche vem operar uma subversão crítica, porque com a noção de valor se coloca, necessariamente, a pergunta pelo valor dos valores. Ou seja, aquilo que nós, aqui e agora, consideramos bom, será que vai contribuir para o prosperar da humanidade? E a pergunta do valor dos valores traz com ela a pergunta pela criação dos valores. Se os valores são humanos - demasiado humanos -, resta saber quem criou esses valores. Mesmo porque os valores podem surgir em um determinado momento, sofrer transformações e desaparecerem. Para o nosso próximo encontro eu sugiro a leitura:
“Para Além de Bem e Mal” - parágrafo 260 “Genealogia da Moral” - Primeira dissertação, parágrafo 10 “Crepúsculo dos Ídolos” - Capitulo “Moral como contra a natureza”, parágrafo 5