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Retrato de Nietzsche
Filosofia - 06 de fev

Nietzsche | Parte 3

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Por Scarlett Marton

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Aviso: este material é uma transcrição do curso “Nietzsche”, realizado pela Casa do Saber e pela professora Scarlett Marton. Por se tratar de uma transcrição, as frases não seguem necessariamente uma ordem ou linha de raciocínio semelhante às de um texto escrito.

A crítica aos pilares ocidentais

Nietzsche, filósofo da cultura, fará uma crítica radical da nossa civilização. Em seu entender, a civilização ocidental está construída sobre três pilares:

O pensamento socrático; A doutrina platônica; O cristianismo;

Vale lembrar que Nietzsche conheceu muito de perto o cristianismo. Na verdade, ele nasceu numa família luterana e vários membros da sua família eram inclusive pastores, como seu pai. Ele foi destinado pela própria família a seguir os estudos de teologia. Mas antes de ingressar na universidade, Nietzsche decidiu mudar o rumo da sua vida, e foi estudar filologia. Filologia e história eram duas disciplinas no século 19 na Alemanha em franca expansão. Os textos que os antigos gregos nos legaram nem sempre chegaram acabados. Na verdade, na maior parte das vezes, nos chegaram em fragmentos, ainda de uma certa maneira, às vezes deturpados pelos barbarismos dos copistas, por terem sido copiados varias vezes. Erros então neles foram inseridos. Ora, ao filólogo, cabia, precisamente, reestabelecer o texto dos antigos. Claro, poderia ser filologia dos textos gregos, ou filologia dos textos orientais. No caso, Nietzsche prosseguiu seus estudos junto de um eminente helenista e se voltou para os textos gregos. Foi por essa via que Nietzsche chegou à filosofia, porque ele entrou em contato com o fragmentos que nos chegaram dos filósofos pré-socráticos. Filósofos que viveram no século 7º a.C. e 6º a.C. na Grécia antiga. Um deles, Heráclito de Éfeso, viveu numa antiga colônia grega da Ásia Menor, essa localidade chamada Éfeso, que hoje pertence à Turquia. Nietzsche escreverá em um dos seus livros, o “Ecce Homo”, de 1888, que jamais sentiu maior familiaridade com um filósofo como aquela que sentiu com Heráclito. De Heráclito vale a pena lembrar a frase: “Nunca se pode banhar duas vezes nas águas do mesmo rio” - panta rei. No encontro anterior, trouxemos como uma das características principais da filosofia nietzscheana o dinamismo. Esse dinamismo Nietzsche encontrará nos escritos de Heráclito.

Heráclito também se preocupava com o principio de geração e corrupção de todas as coisas. Aliás, os filósofos pré-socráticos, de maneira geral, estavam preocupados com essa questão: a questão da arché. Esse princípio que faz com que as coisas existam, aparecem, surjam e depois deixem de existir, desapareçam. Para Heráclito, o principio de todas as coisas era o fogo. O fogo que se traduzia no ser humano como logos - raciocínio. Portanto, era o mesmo princípio que regia tanto o mundo, quanto o ser humano. E este segundo ponto é de extrema importância, porque Nietzsche vai, de alguma maneira, beber no pensamento heraclitiano, não só esta ideia de dinamismo, mas também essa ideia de comunhão entre o homem e o mundo.

Estávamos aí, nos séculos 7º a.C. e 6º a.C. na Grécia antiga e, logo depois, no século 5º a.C., surge Sócrates. Alguns dizem que Sócrates foi o pensador que trouxe a filosofia do céu para a terra, pois Sócrates colocou no centro da reflexão filosófica o ser humano com a sua célebre frase: “conhece-te a ti mesmo”. Com isso, então, a filosofia converteu-se em uma antropologia. É o que dirá Nietzsche. Mas Platão vai além. Essa primeira separação que se instaura entre homem e mundo se agrava, pois Platão, discípulo de Sócrates, no século 4º a.C., trará uma nova divisão. Estabelecera uma divisão entre o mundo sensível, ou seja, o mundo que nos encontramos aqui e agora, que vivemos e que compreendemos pelos cinco sentidos; e o outro mundo, o mundo das ideias. Esse mundo sensível em que nos encontramos é o mundo da doxa, das opiniões, que são transitórias e múltiplas. Podemos ter varias opiniões conversando com várias pessoas, cada um tem a sua e nós mesmos podemos mudar de opinião de um momento para o outro. Mas o outro mundo, o das ideias, lá as coisas se passam de outra maneira. Por que se aqui é o mundo da doxa, lá é o mundo da teoria, e na teoria, as ideias serão essenciais, imutáveis e eternas. Cabe ao filósofo, no entender de Platão, fazer uma ascese, subir desse mundo sensível para o mundo das ideias e, no ápice, Platão colocará três ideias: o Bem, o Belo e o Verdadeiro. Portanto, o Bem passa a ser uma ideia essencial, imutável e eterna. Nietzsche entenderá que o cristianismo é um platonismo para o povo. Isso, na verdade, está dito no prefácio de um dos seus livros: “Para Além de Bem e Mal”. Assim aquele dualismo de mundos, estabelecido por Platão, de mundo sensível e mundo inteligível, se transformou, por obra da religião crista, em Reino de Deus e Vale de Lágrimas. Assim, o cristianismo introduziu, no âmago do ser humano, o vírus da culpa e a noção de pecado.

Este mundo será desprezado em nome do outro. Essa vida será negligenciada em nome da vida eterna. E o corpo, objeto de desprezo, será negligenciado em nome da alma. Nietzsche, filósofo da cultura, criticará todas essas oposições: corpo e alma, esse mundo e o além, essa vida e vida eterna.

No entanto, essas oposições vão se multiplicar ainda mais com a Idade Média: natural-sobrenatural, divino-humano, sagrado-profano. Na Idade Moderna essas divisões serão interiorizadas pelo ser humano: razão e paixões, consciência e instintos etc. Para Nietzsche se trata, precisamente, de recobrar, recuperar aquela unidade entre homem e mundo que nós encontrávamos na filosofia pré-socrática. Nietzsche entende que nós, seres humanos, fazemos parte do mundo e a ele pertencemos. Vale a pena trazer um texto do próprio Nietzsche, no parágrafo 345 do quinto livro de “A Gaia Ciência”:

“A inteira atitude ‘homem contra mundo’, o homem como ‘princípio negador do mundo’, o homem, como medida de valor das coisas, como juiz de mundos, que por último ainda põe a existência mesma sobre sua balança e a acha leve demais - o monstruoso mau gosto dessa atitude nos veio à consciência como tal, e nos ofende -, e já rimos quando encontramos ‘homem e mundo’ colocados lado a lado, separados pela sublime pretensão da palavrinha ‘e’!”

Sugestão de leituras para o próximo encontro: “A Gaia Ciência”, parágrafo 125 “Assim Falava Zaratustra”, prólogo e parágrafos 1, 2 e 3

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Scarlett Marton

Scarlett Marton é uma das maiores especialistas na obra de Friedrich Nietzsche. Mestra em Filosofia pela Université Paris I Sorbonne e doutora em Filosofia pela Universidade de São Paulo, possui doze livros publicados, sendo dez desses sobre o pensador alemão. Suas obras são referências mundiais, sendo publicadas em países como Alemanha, França, Áustria, entre outros. Também é fundadora e coordenadora do GEN - Grupo de Estudos Nietzsche e faz parte da direção do GIRN - Groupe International de Recherches sur Nietzsche.

Cursos com Scarlett Marton

Nietzsche: Vida, Obra e Legado
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