Nietzsche | Parte 2
Por Scarlett Marton
Aviso: este material é uma transcrição do curso “Nietzsche”, realizado pela Casa do Saber e pela professora Scarlett Marton. Por se tratar de uma transcrição, as frases não seguem necessariamente uma ordem ou linha de raciocínio semelhante às de um texto escrito.
Nietzsche, o antissistema. Afinal, o que propôs?
Os estudiosos de Nietzsche, na sua maioria, concordam que Nietzsche é o filosofo da cultura. Na verdade, os filósofos, numa maneira geral, trataram das mais diferentes disciplinas: estética, ética, filosofia política e, aparentemente, Nietzsche não tratou delas. Na verdade, muito se engana quem espera encontrar na obra nietzscheana uma teoria politica acabada, ou uma estética bem organizada. Mas isso não significa que Nietzsche não tenha tratado, por exemplo, das questões relativas à filosofia politica. Nos seu escritos vamos encontrar várias reflexões acerca da relação entre o indivíduo e o Estado, ou então acera dos diferentes sistemas de governos, tais como a democracia, socialismo, anarquismo. O mesmo ocorre com a estética. Estética acabada? Não. Mas reflexões sobre o aparecimento do gênio ou sobre o belo, sim, sem sombra de dúvida.
E tudo isso está disperso pela obra nietzscheana. Assim é quando por vezes me perguntam “mas eu queria algo sobre a verdade, onde posso ler?” Resposta: nos mais diversos textos. Daí a necessidade de frequentarmos os escritos de Nietzsche na íntegra.
Há quem diga que Nietzsche não é um pensador sistemático porque não organizou, numa totalidade coesa e fechada, todas as suas reflexões acerca das diferentes disciplinas filosóficas. Mas é preciso notar que filosofia sistemática e filosofia coerente são coisas diferentes. Ou seja, Nietzsche pode ser (como é) um pensador coerente sem ser um filosofo sistemático. Aliás, Nietzsche mesmo dizia que não era limitado o bastante para o sistema, nem mesmo para o seu próprio sistema. Com isso, Nietzsche se coloca numa determinada linhagem filosófica. Uma linhagem que nós encontramos, por exemplo, nos moralistas franceses do século 17, como La Rochefoucauld e la Bruyére, encontramos igualmente no iluministas do século 18, como Diderot e Voltaire. Todos eles tinham uma aversão aos sistemas filosóficos e nem por isso deixaram de ser considerados filósofos. Ë o caso de Nietzsche.
Houve quem dissesse que Nietzsche era o apologista da força bruta. É bem verdade que em seus textos encontramos passagens em que ele incita a guerra, mas a guerra contra as ideias e os valores da civilização ocidental. Todas essas acusações que foram feitas a Nietzsche tinham por objetivo mostrar que Nietzsche não era filósofo. Acusações que foram feitas ou por ignorância ou por má-fé. Trato delas em um dos meus 16 livros, aqui intitulado “Nietzsche: filósofo da suspeita”.
Houve também quem dissesse que Nietzsche era um autor contraditório. Quem pensa assim, no meu entender, é porque desconhece a filosofia nietzscheana. Na verdade, se duas afirmações, em diferentes momentos parecem se contradizer, é porque Nietzsche, como já vimos, está tratando de um tema a partir de diferentes perspectivas. Ao invés de contradições, temos que pensar no perspectivismo que leva Nietzsche a abordar a mesma questão de diferentes pontos de vista.
Houve também quem dissesse que Nietzsche era um poeta que enlouqueceu, e então decidiram colocá-lo em seu devido lugar e desqualificar, em particular, seus últimos textos, os escritos de 1888. Quando nós nos detemos no exame e na análise desses textos, nós verificamos e constatamos que neles há uma lógica rigorosa. Nenhum sinal de enlouquecimento, mas um pensador extremamente coerente.
Houve ainda aqueles que disseram que Nietzsche era o profeta do nacional-socialismo. Até hoje me surpreende quando encontro quem afirme que Nietzsche é precursor do nazismo. Como nós já tivemos a oportunidade de conversar anteriormente, na verdade muito se deveu à obra de sua irmã, Elisabeth Förster-Nietzsche, que sempre interferiu muito na vida do filósofo, sempre procurou se apropriar dos seus contatos para alcançar uma posição social mais conveniente para ela. E quando Nietzsche enlouqueceu, como já vimos, quando Elizabeth assumiu a tutela do irmão, graças a várias doações, conseguiu comprar uma vila na cidade de Weimar e não hesitava em expor o filósofo a curiosos que até lá iam em romaria. Foi graças a iniciativas de Elizabeth que o nome de Hitler foi associado ao de Nietzsche. O irmão do filosófico também se aproximou de Mussolini. Quando ela morreu, na verdade ela foi velada pelo próprio Hitler, e foi enterrada com a bandeira nazista.
Mas será que Nietzsche realmente apreciava os judeus? Vamos tomar uma passagem de “Para Além de Bem e Mal”, parágrafo 251:
“E os judeus são, sem dúvida nenhuma, a raça mais forte, mais tenaz e mais pura que vive agora na Europa; eles sabem impor-se, mesmo sob as piores condições (e até mesmo melhor do que sob condições favoráveis), graças a algumas virtudes que hoje em dia se prefere taxar de vícios”
Nietzsche propõe uma nova maneira de pensar. Nós estamos acostumados com uma lógica dualista: certo e errado, bem e mal, verdadeiro e falso, belo e feio. Nietzsche entende que não temos que trabalhar com oposições. O que nós temos, na verdade, são finas gradações e nuances. Mudar também nossa maneira de agir, de hábito, nós nos deixamos levar por ações boas e más, ações egoístas e altruístas, esses são os critérios que pautam nossa conduta. Mas Nietzsche se pergunta: e se o bem, ao invés de contribuir para o “prosperar” da humanidade, concorre para sua decadência? E se o mal, ao invés de contribuir para a decadência da humanidade, concorre justamente para o seu prosperar? Tantas provocações que Nietzsche nos faz. Por fim, nossa maneira de sentir, dado o cristianismo, nos vemos como seres que temos uma parte com o divino. Para Nietzsche, nós, seres humanos, somos apenas uma espécie animal dentre outras.
Nietzsche, filósofo da cultura. Mas o que ele entende por filosofia? Filosofia não é uma área especifica de conhecimento, um domínio particular do saber. Filosofia não se identifica com o trabalho técnico. Filosofia é tarefa e missão. A tarefa e missão que Nietzsche reivindica para si mesmo é tomar em mãos as rédeas do destino da humanidade, de modo a combater a civilização ocidental, dar um novo rumo para o ser humano. Ao invés de um animal doente, ele será então um animal bem-logrado.
Para nosso encontro recomendo a leitura dos textos:
“Crepúsculo dos ídolos", capítulo de Sócrates, parágrafo 11; “O Anticristo”, parágrafos 6 e 7; “A Gaia Ciência”, parágrafo 346;