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Filosofia - 14 de dez

Nada mais normal do que um tanto de loucura

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Por Guilherme Peres

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O termo “evolução” é carregado de controvérsias. Ele traz em si uma conotação de hierarquia e valor – a versão mais recente sendo necessariamente melhor do que a anterior e superior a ela. Sabemos que nem sempre a história corre nesse sentido. Mais do que isso, ela ganhou espaço no vocabulário popular dentro de um contexto que, muito indiscriminadamente, transpôs ideias de uma ciência que ainda engatinhava como determinantes também da constituição das subjetividades e das relações sociais. O exemplo mais gritante aqui é, talvez, o conceito de “raça”, ainda que as humanidades como um todo tenham se contaminado de “biologizações”, da geopolítica à psicologia.

Somos, você e eu, imersos em contextos similares, herdeiros diretos dessa e de outras loucuras. Quando não beneficiários delas, ou ainda prejudicados, porque ainda não superadas. Consideramo-nos seres racionais porque dotados da capacidade de pensar e elaborar ideias mais sofisticadas que as de um chimpanzé (supostamente), como se essa constatação por si só fosse capaz de nos imunizar contra a prática da barbárie. Brevemente antes da virada do século 18, Francisco Goya produziu uma pintura chamada “O Sonho da Razão Produz Monstros”, antecedendo muito o que grandes pensadores do século 20 manifestariam a respeito das atrocidades que a história recente nos apresentou.

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Há um jogo de sentidos aqui – a razão como oposta a loucura, mas produzindo os frutos de sua oposta. E a loucura? Henri Bergson, um dos filósofos mais importantes do pensamento ocidental, foi muito influenciado pela biologia e pela ideia de evolução, sobretudo pelos escritos de Darwin. Ele falava do artista como um ser antinatural que, por meio da intuição, proporcionava outras vias de aproximação com a realidade. A natureza, determinada e rígida em suas leis, abriu margem para que surgisse a indeterminação pelas mãos de sua própria criação. Não se trata de romantizar a loucura, já que ela tem efeitos práticos de muito sofrimento, por vezes com efeitos irreversíveis, mas de entender que ela implica uma normatização quase insustentável e, por que não, fantasiosa. Pensando friamente, estamos, em grande maioria, a uma ou duas crises de cometermos uma loucura.

De toda forma, o desvio da norma proporcionou muita da genialidade das produções artísticas que conhecemos. E aqui vale uma ressalva: assim como as normas são, quando aplicadas, acordos tácitos entre aqueles sujeitos a ela, também só ganham a qualidade de “certas” e “erradas”, “boas” e “más”, com o tempo, por meio de consensos de interpretações (lembrando aqui da condenação de Oscar Wilde por sua homossexualidade, ou da letra da lei salvaguardando pelo mundo a prática de racismos e genocídios). Em “Elogio da Loucura”, Erasmo de Roterdã brinca com o privilégio dos bobos de falarem as coisas com sinceridade e franqueza. Na loucura das utopias e distopias, no enxergar o que os demais não veem, na capacidade de sonhar e imaginar, elaboramos saídas e alternativas à guia de uma racionalidade que, convenhamos, beira a loucura.

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Nossa espécie é louca em grande medida. Inventamos sinais gráficos e sonoros, letras e palavras, que ganham significados e por meio das quais nos comunicamos. Que são diferentes entre si enquanto idiomas, mas que compartilham sentidos. Imaginamos números e formas geométricas, elaboramos ciências. Criamos cópias da natureza, de nós mesmos, combinamos sons de frequências diferentes e fazemos música. Sonhamos e os frutos destes sonhos nos convocam a transformar o mundo. Descobrimos inclusive que há coisas que só podemos ver através de lentes muito poderosas, além de coisas que não podemos ver ou experimentar de jeito nenhum, nem com todo o dinheiro do mundo. Se isso não é uma loucura imensa, eu não sei o que é. Da mesma forma, passamos metade dos dias em regimes de demanda de produtividade, inovação, originalidade, espontaneidade e energia que nos esgota. Desenvolvemos um modo de criação e reprodução de vida que nos conduz em aceleração constante ao abismo, como se só pudéssemos nos sentir vivos e participantes do mundo diante do risco iminente da morte, amargando temperaturas sufocantes, além das frustrações e culpas. Se isso também não é uma loucura imensa, eu não sei o que é.

Desenvolvemos as ideias de “loucura” e “normalidade” que, apesar das definições técnicas da medicina e da psicologia, têm também sua relação com um termômetro moral que as regulam. Imaginem só voltar ao passado e dizer ao seu ancestral que dali a centenas de anos você terá a ideia de abordá-lo ao ler essa provocação sentado, numa tela em que letras e imagens aparecem por meio de sinais de rádio e informação que viajam invisivelmente pelo ar... Preciso dizer mais alguma coisa?

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Guilherme Peres

Especialista de conteúdo e curadoria da Casa do Saber. Jornalista, pós-graduado em globalização e cultura (FESPSP) e pesquisador da Cátedra Otávio Frias Filho de Estudos em Comunicação, Democracia e Diversidade (IEA-USP e Folha de S. Paulo).

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