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Recorte de imagem do Livro Vermelho de Jung
Psicanálise - 06 de fev

Jung: Vida e Obra | Parte 3

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Por Lilian Wurzba

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Aviso: este material é uma transcrição do curso “Jung: Vida e Obra”, realizado pela Casa do Saber e pela professora Lilian Wurzba em 2021. Por se tratar de uma transcrição, as frases não seguem necessariamente uma ordem ou linha de raciocínio semelhante às de um texto escrito.

Inconsciente, mitos, símbolos e sonhos

Relembrando, as funções da consciência: em primeiro lugar, tomamos contato com o objeto a partir dos sentidos (por isso a função “sensação” é mais externa). Os órgãos dos sentidos me dizem que algo existe.

O pensamento me ajuda a nomear, identificar o que é ou do que se trata o objeto.

Em seguida, vem o sentimento, que é uma função de avaliação, de julgamento, no sentido de atribuição de valor para algum objeto.

Em seguida a intuição, que nos aponta para as possibilidades, ou como se fossem os bastidores daquela situação, daquele objeto.

A partir daí, vai aprofundando um pouco mais, se distanciando um pouco mais da consciência, mas ainda como funções dela temos as funções endopsíquicas: memória, componentes subjetivos das funções, afetos e invasões. Embora sejam funções ainda da consciência, não temos muito controle sobre elas. Por exemplo a memória, podemos tentar lembrar o nome de alguém, uma situação, pode ser difícil. A memória, às vezes, não se curva à influência da vontade, do desejo, da consciência.

Componentes subjetivos das funções seriam os valores atribuídos às funções. Quando entramos em contato com alguém que não conhecemos, fazemos um julgamento a partir da imagem que montamos. Depois você vai ver se bate ou não com a realidade que a pessoa traz. Isso se deve aos componentes subjetivos da funções.

Afetos e emoções, para o Jung, são sinônimos e se referem a algo que acontece. Não temos muito controle. Podemos intervir com a vontade na consequência do afeto. Por exemplo, quando somos fechados no trânsito e sentimos raiva, mas não desdobramos esse afeto.

As invasões são conteúdos que aparecem, que emergem na consciência sem o menor controle que possamos exercer sobre eles. Não se caracteriza como uma patologia, porque a gente “surta” de vez em quando, falamos coisas que não planejamos – “nem parecia eu”. Isso caracteriza uma invasão. Que acontece, por exemplo, num surto psicótico, mas a diferença é que na psicose existe uma consciência frágil que não consegue lidar, recuperar, voltar ao estado anterior.

Aprofundando cada vez mais entramos na esfera do que Jung chamou de inconsciente pessoal, formado por conteúdos que foram vivenciados, experienciados na vida cotidiana do indivíduo e que, por algum motivo, foram reprimidos. Ou alguns conteúdos que acabaram perdendo o significado, a energia psíquica que sustentava, então acaba entrando no esquecimento, fica guardado.

E existe a esfera mais profunda, que aí Jung vai divergir da psicanálise freudiana quanto à existência dessa esfera, que ele denominou de inconsciente coletivo. Essa é a estrutura da psique.

Lembram que eu mostrei que existem três tipos de conteúdos na consciência: as funções, os processos volitivos e instintivos, e os sonhos. Só que, o que Jung percebeu, é que existem, a partir do estudo desses conteúdos oníricos, que algum dia fazem relação com alguma vivência que a pessoa teve. Então esses conteúdos provavelmente foram reprimidos e aí caem na interpretação que Freud propôs, de o conteúdo do sonho trazendo alguma relação com a consciência daquele momento a partir da vivência do indivíduo. Porém ele percebeu que nestes sonhos também aparecem conteúdos que nunca foram conscientes. De onde vêm?

Quando ele voltou dos Estados Unidos, começou a estudar mitologia, lembram? Depois entrou no processo que ele chamou de confronto com o inconsciente, em que muitas imagens começaram a emergir, algumas sem relação com a vida pessoal dele, que ele não sabia de onde viam. Além disso, tinham pacientes que traziam referências a esses conteúdos que também não podiam ser classificadas como referentes à vida pessoal, cotidiana do indivíduo. De onde viriam esses conteúdos? É aí que ele vai entrar na esfera daquilo que é simbólico, e vai caracterizar a linguagem do inconsciente como uma linguagem simbólica. O que é o símbolo para Jung?

Símbolo é diferente de alegoria, diferente da semiótica, de sinal. Um símbolo representa, ou melhor, ele tenta expressar algo que sabemos que existe, mas não sabemos o que é. Na definição de Jung, é a melhor representação possível de algo que é desconhecido, mas sabido como existente. O que o símbolo traz? Uma parte conhecida – uma parte da consciência, algum aspecto que a consciência possa identificar – e um mistério – que ainda não sabemos a que se relaciona.

Em “O Homem e seus Símbolos” ele fala de forma bem clara que o homem sempre simbolizou. Quando você indica uma roda da divindade, por exemplo. Sabemos o que é uma roda, agora, quando esbarramos no divino, podemos falar dele “como se”, mas o que ele é exatamente não sabemos. Então caímos numa linguagem simbólica, uma representação de algo que nos é desconhecido. Essa é a diferença que ele faz entre essas três instâncias:

“Toda concepção que explica a expressão simbólica como analogia ou designação abreviada de algo conhecido é <u>semiótica</u>. Uma concepção que explica a expressão simbólica como a melhor formulação possível, de algo relativamente desconhecido, não podendo, por isso mesmo, ser mais clara ou característica, é <u>simbólica</u>. Uma concepção que explica a expressão simbólica como paráfrase ou transformação proposital de algo conhecido é <u>alegórico</u> (...) O símbolo só é vivo enquanto cheio de significado” (Jung, em “Tipos Psicológicos”)

Então, por exemplo, em sonhos, a gente precisa prestar muita atenção e tomar muito cuidado, principalmente no consultório, que temos aquela ânsia da interpretação quando o paciente traz um sonho, é preciso cuidado. Em primeiro lugar, é preciso fazer uso das associações que a pessoa, que o sonhador faz daquelas determinadas imagens. Então, por exemplo, você sonha com uma roda. O que roda tem de significado para você? Que roda é essa, onde você viu, de que momento da sua vida, a que momento te remete? Até chegar em algum ponto no qual a pessoa não traz nada que possa justificar ou agregar qualquer significado. Aí você sai do pessoal. Nós, enquanto psicoterapeutas, podemos interferir aí e ir atrás da análise dos símbolos.

Vejam o quanto a definição de Jung, a consideração de símbolo que ele toma, não está tão distante, não é tão diferente de uma proposta de um filósofo como Ernst Cassirer. Em “O Ensaio sobre o Homem”, como ele diferencia? Muitos colocam Cassirer como a contraparte filosófica da psicologia junguiana: o que Jung falou do ponto de vista psicológico, talvez seja visto de uma perspectiva filosófica como ele aponta:

“Sinais e símbolos pertencem a dois universos diferentes do discurso: um sinal faz parte do mundo físico do ser; um símbolo é parte do mundo humano do significado” (Ernst Cassirer, “Ensaio sobre o Homem”).

O que é o sinal? Quando você vê uma concha vermelha com um fundo amarelo, você sabe que é uma indicação do posto Shell. Um M amarelo é o McDonald’s. Isso é um sinal, tem um significado já limitado. Quando você está na esfera do simbólico, você expressa algo, mas esse algo diz mais do que aquilo que você está expressando. Por exemplo, quando na sociedade primitiva se falava do deus trovão, aquelas pessoas não sabiam, ou não viam, que um trovão é provocado por um choque entre duas nuvens carregadas. Será que não sabiam disso? Sabiam, eles viam isso, não podemos menosprezar a capacidade científica do homem primitivo, talvez não expressando como hoje, vide, por exemplo, até hoje a engenharia não descobriu como foram realizadas as pirâmides, tem discussões em cima disso e com todo o desenvolvimento tecnológico que a gente tem. E quanto tempo faz isso?

Só que como o homem primitivo expressava? Ele não expressava a partir da descrição do fenômeno físico: um trovão é quando há um choque de duas nuvens carregadas e provoca uma descarga elétrica. Chamava de deus trovão, e que o deus trovão estava se manifestando justamente por causa de alguma coisa que o homem teria feito. A relação entre a natureza e o homem era mantida porque tinha um valor, um significado, que acabamos perdendo nessa de colocar tudo de forma racional, a descrição do fato em si, ou tentando fazer a descrição desse fato.

O que ele vai abordar sobre a questão do símbolo?

“Sob a forma abstrata, os símbolos são ideias religiosas; sob a forma de ação, são ritos ou cerimônias” (Jung, em “A Energia Psíquica”). Símbolo é o mecanismo psicológico que transforma a energia psíquica. Nós temos, psiquicamente falando, Jung propôs um modelo de estrutura psíquica que funciona a partir de um dinamismo provocado pela própria energia psíquica, ou energia vital. Conceito diferente de libido, de Freud. Libido, para a psicanálise, é energia sexual; para Jung, é energia vital, sendo que uma das manifestações dessa energia vital pode ser a sexual, mas não é a única. Essa é a diferença, ele amplia o conceito.

O que significam os símbolos para Jung? “Os símbolos representam tentativas naturais para a reconciliação e união de elementos antagônicos da psique”. Ou seja, o símbolo faz a união de opostos. No símbolo a gente tem a união de elementos conscientes e inconscientes. O símbolo que promove essa transformação e energia agrega a consciência e possibilita sua ampliação. A meta do desenvolvimento psicológico, para Jung, é a criação e ampliação de consciência. Na medida em que a psique se expressa através dos símbolos, ela ajuda a consciência a ser ampliada, e isso só é feito através de imagens. Tudo que percebemos, percebemos através da imagem. Ele chega a dizer inclusive que até a dor física experimentamos de forma psíquica. Tem pessoas que são muito sensíveis à dor e outros nem tão sensíveis.

Os símbolos são “elementos importantes de nossa estrutura mental e forças vitais na edificação da sociedade humana”. Quando ele percebeu que a linguagem mitológica é metafórica, simbólica, diz em “Símbolos da Transformação”:

“Quem conseguiu ler A Interpretação dos Sonhos de Freud sem se indignar com a novidade e audácia aparentemente injustificada de seu procedimento e sem repulsa moral contra a incrível crueza da interpretação dos sonhos, e portanto conseguiu deixar este assunto especial agir sobre si serenamente e sem preconceitos, certamente terá sentido uma impressão profunda no trecho em que Freud lembra que um conflito individual, isto é, a fantasia de um incesto, é uma das raízes principais do grandioso drama antigo, a saga de Édipo” (Jung, em “Símbolos da Transformação”, p. 3)

A linguagem mitológica fala de algo que não foi vivenciado só naquele momento – na mitologia grega, na Antiguidade etc. Aquilo parece que nos remete a algo que perdura, embora seja caracterizado, ou vestido com uma roupagem nova, atualizado. O incesto, lá como traz o mito de Édipo, aquele que foge da previsão de Tirésias dizendo que ele iria se apaixonar pela mãe, e se dá exatamente com a mãe verdadeira, por quem ele se apaixona. Isso é literal? Claro que não, isso é um símbolo representando um aspecto psíquico importante. Daqui a pouco vai ficar mais claro.

Essa linguagem, então, é a linguagem de que esfera psíquica? Daquilo que Jung vai chamar de inconsciente coletivo. Por que coletivo? Porque é uma estrutura básica da psique humana e que não vai variar em termos estruturais. Vai variar em termos de conteúdo. Por quê? Vamos pensar: o ser humano sempre teve pai e mãe, desde a Antiguidade, das cavernas. A forma de lidar com essas figuras mudou ao longo do tempo, mas existe a possibilidade de eu lidar com essas figuras e isso está registrado, como uma marca, na estrutura psíquica. A gente nasce com uma estrutura psíquica como se tivéssemos formas. Pensem num quebra-cabeças. As peças têm configurações diferentes. Eu pego uma peça e encaixo nessa configuração, não ponho qualquer peça – só tem uma que encaixa. Nós fazemos isso. Essa configuração, esse contorno em nossa estrutura psíquica, e à medida que vamos vivendo, trazemos a peça que se encaixa, mas de forma atualizada.

Essa esfera, de forma mais sintética, como é definida por ele?

“O inconsciente coletivo é a formidável herança espiritual do desenvolvimento da humanidade que nasce de novo na estrutura cerebral de todo ser humano. A consciência, ao invés, é um fenômeno efêmero, responsável por todas as adaptações e orientações de cada momento, e por isso seu desempenho pode ser comparado muitíssimo bem com a orientação no espaço. O inconsciente, pelo contrário, é a fonte de todas as forças instintivas da psique e encerra as formas ou categorias que as regulam, quais sejam precisamente os arquétipos, todas as ideias e representações mais poderosas da humanidade remontam aos arquétipos. Isto acontece especialmente com as ideias religiosas, mas os conceitos centrais da ciência, da filosofia e da moral também não fogem a esta regra. Na sua forma atual eles são variantes das ideias primordiais, geradas pela aplicação e adaptação conscientes dessas ideias à realidade, pois a função da consciência é não só a de reconhecer e assumir o mundo exterior através da porta dos sentidos, mas traduzir criativamente o mundo interior para a realidade visível” (Jung, em “Natureza da Psique”, p. 95-96).

Quando ele fala “herança espiritual”, o espiritual é sempre psíquico, não no sentido do fantasmagórico, de uma entidade, não. É no sentido daquilo que não é material, certo? Não uma estrutura que está no cérebro humano, num local determinado, mas nasce da estrutura cerebral humana, porque são as condições que temos de realização. Da mesma forma que o joão-de-barro nasce com uma estrutura que o possibilita fazer seu ninho de barro. Ele não vai na escola de engenharia e arquitetura aprender, ele nasce com isso. Isso é o que ele traz de natureza dele. Da mesma forma nós trazemos a nossa natureza, nossas possibilidades.

O que é a consciência para Jung? Ela vai se formar a partir de uma matriz. Nascemos com consciência? Não, mas com a possibilidade de desenvolvê-la, com um conjunto de possibilidades – essa matriz -, de onde vai surgir, ao longo do tempo, nossa consciência. A fonte está aqui. Essa consciência, qual vai ser o papel, a função dela dentro dessa estrutura psíquica? Ela é o “órgão” da diferenciação, da adaptação, não só de nos permitir uma adaptação ao mundo externo, como também ao mundo interno, certo? Para isso, ela vai recorrer a alguns aspectos estruturais psíquicos. Então a gente cai naqueles nomes que estão banalizados na linguagem comum, muito ditos, embora o entendimento não seja tão claro assim. A consciência recorre a alguns aspectos que permitem adaptação ao mundo externo, a funções, a papéis. Para eu me adaptar a uma sala de aula como aluno, tenho de desempenhar o papel de aluno; na minha família como filho, tenho que desempenhar papel de filho. O que me permite desempenhar esses papéis? Uma estrutura psíquica chamada persona. Essa estrutura psíquica me permite fazer a mediação com o mundo externo. Ao passo que tenho outra estrutura psíquica que me permite uma adaptação ao mundo interno, que Jung denomina anima e animus. É um conceito um pouco mais complicado, mas vamos pensar que é a alma. Se eu tenho uma consciência masculina, o sistema psíquico é um sistema autorregulador que funciona por compensação (por complementaridade ou oposição), significa que se eu tenho uma consciência que funciona de modo masculino, por compensação, esta estrutura vai ser feminina, para fazer a totalidade, a integralidade; se eu tenho uma consciência que funciona de maneira feminina, quem faz essa mediação com o mundo interno vai ser masculina, o contrário para compensar, compor a integralidade. Vejam que não falei de gênero, estou falando de funcionamento da consciência, conteúdos da consciência.

Outra coisa importante. Eu falava do joão-de-barro, uma ave que traz uma marca que permite ele se desenvolver e construir seu ninho com o barro. Do ponto de vista da biologia, a gente está na esfera dos instintos. Ele não aprende isso, mas ele tem essa “imagem” que permite que ele desenvolva dessa forma. Da mesma maneira o ser humano também, e Jung fez essa diferenciação, trazendo para a discussão, baseado em toda a teoria do século 19 e início do século 20 sobre os instintos do ponto de vista biológico, mostrando que nesta esfera psíquica do inconsciente coletivo, matriz de tudo, trazemos instintos e arquétipos.

Os instintos, do ponto de vista biológico, são um padrão que nos leva à ação diante de um estímulo. Por exemplo, o instinto de sobrevivência, que é expressado pela fome. No ser humano, esses instintos passam pelo processo de psiquificação: o que era inequívoco (estímulo-resposta) passa por uma transformação e recebe uma imagem: com fome, não saímos mordendo o que vemos pela frente, mas vamos a um restaurante, fazemos o pedido, esperamos chegar. Numa situação crítica, por exemplo em um naufrágio, as pessoas perdem completamente essa “humanidade” e passam para a “animalidade”. Jung chegou num ponto em que disse, no volume 7/1 das Obras Completas (“Psicologia do Inconsciente”), que o inconsciente não só provoca transformações a partir do seu conteúdo de arquétipos, de instintos, mas também sofre transformações a partir da vivência ao longo do tempo. A expressão, na mitologia persa, egípcia, grega, é diferente daquilo que temos hoje, mas a estrutura é a mesma. Por isso ele usa o termo “arquétipo”. É só a gente lembrar da palavra: arché (princípio, origem) e tipós (marca) – é a marca original. É com isso que nascemos e que vai ser atualizado, dependendo do desenrolar do desenvolvimento da própria humanidade.

Dei uma geral sobre a estrutura psíquica só para vocês entenderem do ponto de vista do indivíduo, como funciona. Mas é interessante a gente observar que a preocupação de Jung não era com o indivíduo único, na clínica, no sentido de descobrir ou tratar uma patologia. Ele queria entender o ser humano, a condição humana, principalmente a condição de sofrimento do homem moderno. Essa era a grande questão. O que estava acontecendo? A Primeira e a Segunda Guerra mundiais. Como o ser humano funciona, para além ou antes da patologia. Qual é o aspecto em que ele vê (ou percebe) esses conteúdos mais evidentemente? O aspecto são os sonhos.

Os sonhos é que trazem esses conteúdos que fazem com que ele pense que existe algo para além. Mas, principalmente, a experiência que hoje vemos registrada no “Livro Vermelho”, pessoal, porque ali ele teve muitos sonhos, visões, que ele não conseguia explicar a partir da vivência pessoal dele. Foi a pergunta que ele se fez: qual a minha participação no coletivo? Como o homem, individual, está inserido no coletivo. As duas questões que norteiam toda a obra de Jung, que ficaram sem resposta na Idade Média, são principalmente: de onde vem o mal? E qual a participação do homem no drama divino? Lembrem: Jung estava inserido no mundo ocidental, marcado fundamentalmente pelo cristianismo. A gente acreditando ou não, tendo fé ou não, não importa, os registros que temos na história estão todos calcados no cristianismo. Certo? Então não dá para fugir disso.

Essa preocupação de entender como o homem participa deste aspecto, desta expressão, manifestação humana, qual seria então?

“Os cristãos costumam perguntar por que Deus não lhes fala, como se crê que fazia no passado (...) Estamos tão emaranhados e cativados por nossa consciência subjetiva que esquecemos do antiquíssimo fato de que Deus fala especialmente através de sonhos e visões. Os budistas descartam o mundo de fantasias inconscientes, alegando que não passam de ilusões inúteis; os cristãos colocam sua igreja e sua Bíblia entre eles e o próprio inconsciente; e os intelectuais racionais ainda não sabem que sua consciência não é sua psique inteira (...) mas se um teólogo realmente crê em Deus, com que autoridade pode afirmar que Deus é incapaz de falar através dos sonhos?” (Jung, em “O Homem e seus Símbolos”)

Lá atrás, inclusive na Bíblia e numa literatura que trata sobre interpretação de sonhos (isso não é privilégio do século 20), qual era o significado do sonho? Era a manifestação divina. A ponto de no Egito e na Grécia existirem templos em que as pessoas ficavam naquilo que era chamado de incubação: ficar no templo, participar de rituais, e aguardar essa resposta, orientação da divindade.

O que falamos hoje dos sonhos? Não são apenas reminiscências de experiências anteriores. Para os religiosos, são ilusões ligadas a fantasias, isso desde o século 17, sem significação, ficção, “coisa da sua cabeça”. Quando lemos “Deus”, Jung usa a linguagem religiosa porque ela é a única que trabalha com o simbólico. A linguagem da ciência é a da razão. Lembram que eu falava para vocês que no volume 5 (“Símbolos da Transformação”) ele fazia uma diferenciação entre dois tipos de pensamento (dirigido e de fantasia)? Sonhos são pensamentos de fantasia, imagens que ocorrem. Produtos da consciência? Não. Conteúdos da consciência, mas produtos do inconsciente.

Quando Jung usa a linguagem religiosa falando de Deus e tal, é uma linguagem mais antiga, medieval, mas, fazendo analogia com a estrutura psíquica, quando ele fala da imagem divina, não está discutindo a existência metafísica de Deus – ele deixa isso muito claro, porque disseram que ele psicologizou a religião e considerou que Deus é o self, a totalidade psíquica. Ele não disse isso, mas que não é possível discutir a existência ou não de Deus a partir de um pensamento racional, porque está para além dela, é metafísica. Eu posso, no entanto, discutir, sim, a partir da ciência, uma imagem divina que está marcada na psique humana. Se vocês olharem, em todas as civilizações, de todas as épocas, de todos os lugares, sempre vamos encontrar uma relação do homem com alguma divindade, qualquer que seja o nome dado. Quando lemos “Deus”, a gente pensa, do ponto de vista psicológico, da totalidade psíquica. Todas as vezes que experimento algo da totalidade psíquica, o self, é a mesma experiência ou sensação descrita por alguém que se relaciona com Deus, por alguém de fé. Peguem as místicas renanas dos séculos 12 ou 13, elas descrevem a relação com Deus. Se vocês pegarem as sensações descritas ali e pegarem do ponto de vista psicológico o que uma pessoa experimenta, é a relação com a totalidade. Ele não vai discutir a existência metafísica da totalidade.

O que é o sonho para ele? Sinteticamente falando:

“O sonho é uma porta estreita, dissimulada naquilo que a alma tem de mais obscuro e íntimo; essa porta se abre para a noite cósmica original, que continha a alma muito antes da consciência do eu e que a perpetuará muito além daquilo que a consciência individual poderá atingir. Pois toda experiência do eu é esparsa; distingue fatos isolados, procedendo por separação, extração e diferenciação; só o que pode entrar em relação com o eu é percebido. A consciência do eu, mesmo quando aflora as nebulosas mais distantes, é feita de enclaves bem delimitados. Toda consciência especifica. Mediante o sonho, inversamente, penetramos no ser humano mais profundo, mais geral, mais verdadeiro, mais durável, mergulhado ainda na penumbra da noite original, quando ainda estava no todo e o todo nele, no seio da natureza, indiferenciada e despersonalizada. O sonho provém dessas profundezas, onde o Universo ainda está unificado, quer assuma as aparências mais pueris, as mais grotescas, as mais imorais”. (Jung, 1951)

Ou seja, é o conteúdo que emerge dessa região mais profunda da psique. Para exemplificar, eu trouxe um sonho que o próprio Jung descreve nas conferências de Tavistock. Quem quer se introduzir na teoria de forma geral, um primeiro contato, não adianta pegar os volumes em sequência, é difícil de acompanhar (até porque falta o estofo ali). Peguem as cinco conferências de Tavistock – estão no volume 18/1. Por quê? Porque ele apresenta essas conferências em 1935 para uma assistência de psicanalistas, então a linguagem usada é mais palatável, sem usar conceitos (persona, sombra, complexo...), ele vai falando dos conteúdos e mostrando as experiências, como chegou às conclusões. Num primeiro momento, para terem contato com a teoria de forma geral, as cinco conferências dão um panorama bem geral. Na primeira ele fala de consciência, na segunda de complexos, entre no inconsciente pessoal e análise de sonho na terceira, continua na interpretação de sonhos no inconsciente coletivo e arquétipos na quarta e, por último, o fenômeno da transferência. Então vocês têm um panorama geral da teoria para depois entrarem em outros livros.

Esse caso é de um paciente que veio para Jung. As pessoas procuravam os médicos, eram internadas em clínicas e quando ninguém conseguia dar conta, a pessoa ia para o Jung. Da mesma forma, quando alguém era preso e não confessavam, mandavam para ele fazer o teste de associação de palavras. Esse paciente tem o que é conhecido como o mal das montanhas: vertigem, mal-estar, sudorese, quase desmaia, traz sintomas físicos dessa síndrome, mas não tem a síndrome em si. Todos os exames feitos, tudo, não tem, mas apresenta os sintomas. O que está acontecendo com ele?

Lembram que eu falei da união psique-corpo e da interferência de um no outro? É a psicossomática pura: tem sintomas físicos, passa mal, queda de pressão, náusea, tudo isso, mas nada justifica esses sintomas. Foi parar no Jung. Era um professor, de quarenta e poucos anos, casado, tentando uma cátedra na universidade e é isso. Ele traz esse panorama geral só. Uma pessoa que se apresenta um pouco arrogante, mas é essa a descrição que ele dá. E aí vão para os sonhos.

Primeiro sonho: “O paciente se encontra numa pequena cidade suíça. Ele surge como uma figura muito solene, de casaco negro e longo; debaixo dos seus braços, carrega vários livros volumosos; há um grupo de rapazes, que ele reconhece como ex-colegas de classe. Olham o paciente e dizem: ‘não é sempre que esse fulano aparece aqui’”.

A partir das associações, Jung pergunta sobre os rapazes. Eles eram colegas de escola do lugar onde ele morava, no campo. Sua família era humilde e ele já está buscando a cátedra, em outro patamar, na cidade, estudado. Ele não vai muito lá, ou seja, parece que ele se afastou do seu ambiente original. Percebem pelo sonho?

Segundo sonho: “Ele sabe que deve ir a uma importante conferência e prepara sua pasta de papéis para isso. O seu tempo voa e o trem está para partir. O paciente cai no conhecido estado de precipitação e medo de chegar tarde demais. Tenta ajuntar suas roupas, não sabe onde está o chapéu, perdeu o casaco e aí começa a correr pela casa berrando: ‘onde estão as minhas coisas?’ Finalmente consegue encontrar tudo e sai correndo de casa, mas acaba por descobrir que esqueceu a pasta de papéis. Volta apressadamente e vê no relógio que o tempo está voando. Corre para a estação, mas a rua está tão mole quanto um pântano e seus pés não conseguem mover-se. Ofegante ele chega à estação, a tempo de ver que o trem acabara de partir. Sua atenção é atraída pela estrada de ferro que aparece como no desenho a seguir:

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O paciente se encontra em A, a cauda do trem se encontra em B e a máquina já está chegando em C. Observa o trem por muito tempo e pensa: ‘se pelo menos o maquinista, ao atingir o ponto D, tiver inteligência suficiente para não se precipitar a todo valor... Se ele fizer isso, o longo trem que está sendo puxado, e que ainda está fazendo a curva B, acabará descarrilhando’. Bem, o maquinista chegou a D e abriu a válvula de vapor completamente; a máquina começa a puxar com mais força e o trem se precipita. O sonhador vê a tragédia se aproximando, o trem sai dos trilhos, ele grita, acordando em seguida, dominado pelo medo característico dos pesadelos”.

O que observamos aqui? No sonho ele está numa situação parecida com sua vida real, cotidiana, porque está pegando papéis, vai para uma reunião e é isso que ele faz. Inclusive é a atividade acadêmica dele, como professor que está buscando um posto maior dentro da universidade. Está difícil para ele pegar o trem, para se relacionar com o outro lado. Ele pensa que se houver uma manobra malfeita, vai tudo por água abaixo. Como de fato acontece. Tudo está mostrando algum aspecto pessoal, tudo tem relação com a vida dele do cotidiano.

Terceiro sonho: “Estou no interior, numa casa simples de camponês, com uma camponesa idosa e maternal. Conto-lhe sobre uma grande viagem que estou para fazer: irei a pé da Suíça a Leipzig. Ela fica impressionadíssima, o que muito me agrada. Nesse momento, olho através da janela para um campo, onde trabalhadores estão amontoando feno. Aí a cena se modifica. Surge ao fundo um lagarto-caranguejo. Inicialmente ele se move para a direita, e depois para a esquerda, de tal forma que me encontro em meio ao ângulo formado por suas oscilações, como se eu estivesse em meio ao ângulo de uma tesoura aberta. Tenho nas mãos um pequeno bastão ou galho, e com ele toco de leve a cabeça do animal, matando-o. Depois fico longo tempo olhando aquele monstro”.

Ele gosta de mostrar o quanto é capaz de fazer as coisas. Até a parte do lagarto, há relações com sua vida pessoal, como a senhora idosa, dona da pensão em que mora. Ao final, ele diz que deve ter lido em algum lugar sobre a criatura, mas não consegue fazer muita relação. Jung pensa sobre o que o lagarto estaria mostrando. É possível perceber que o sonho traz aspectos pessoais, relacionados à consciência do indivíduo daquele momento, aspectos vividos e esquecidos (ou reprimidos), e aspectos que ultrapassam a pessoalidade, mais amplos, de uma linguagem mitológica mais profunda, manifestação do inconsciente coletivo. Jung trabalhou essa questão mostrando como o paciente lidou com isso.

Como o paciente tinha conhecimento da literatura psicanalítica, ele associou a mulher a uma figura maternal, que se transforma em uma criatura ameaçadora, que ele mata com uma “varinha mágica”. Jung contesta, perguntando por que ele teria ficado tanto tempo olhando parado, e vai levando o paciente a pensar o quanto ele estaria afastado da própria origem, o quanto teria desenvolvido um ego inflado, colocando-se acima de suas raízes. O feno que foi juntado era relacionado à atividade que ele fazia quando jovem com a família. O paciente tentava resolver a questão de forma mágica, achando que poderia alcançar o topo (por isso a vertigem, o mal da montanha, com sintomas como alguém que não alcançará o topo) renegando a própria origem.

Dei uma sintetizada para mostrar para vocês o quanto, na interpretação dos sonhos, aparecem aspectos pessoais e coletivos (que podem aparecer, não necessariamente), e como se trabalha interpretando e ampliando esses símbolos.

Agora o sonho de uma paciente minha, uma adolescente que veio para o processo da psicoterapia porque estava no momento de vestibular, de escolher uma carreira. Ela apresentava sintomas físicos, uma ansiedade muito grande. Era boa aluna e começou a ir mal. Fomos trabalhando até que um dia ela trouxe um sonho:

“Eu estava em frente a uma casa. Desci as escadas e entrei na sala, onde uma menina estava sendo velada. Era noite e só eu estava ali. Ela havia sido morta por uma faca que ainda estava cravada em seu peito. Ela me disse que havia deixado tudo que possuía para mim – um bichinho de pelúcia. Esse bichinho era um enorme carneiro e no seu interior havia um lindo e enorme diamante”.

Ela vinha de uma família sem conhecimento religioso – por exemplo, qual o significado do carneiro ou cordeiro? Ela não tinha esse conhecimento. Diamante era uma pedra preciosa, mas o significado que conhecemos a partir da mineralogia, que é uma pedra que contém a integralidade ainda que partida... Não tinha conhecimentos pessoais desses símbolos e a gente vê uma expressão onírica deste porte em uma menina adolescente. Qual era o grande conflito? Não a escolha da carreira, como se apresentou aparentemente, o grande conflito dela era passar para a idade adulta. Era deixar de ser criança. Por isso que a menina morre com uma faca cravada no peito. Depois de muito conversar com ela a respeito, é como se a vida – ela fala isso – a apunhalasse pelas costas. Ela precisaria se tornar adulta (a escolha da carreira implica adentrar a juventude e a se tornar adulta, responsável por si mesma) e “não queria” sair da fase infantil. Foi lindo esse processo, doloroso para caramba, como vocês podem imaginar, mas foi muito bonito, principalmente a partir dessa manifestação de self, porque aqui é a manifestação do inconsciente mais profundo, não tem a ver com a pessoalidade. Claro que indica alguma coisa do pessoal, mas vai para além, é como se ele trouxesse uma resposta para ela, “olha, vai, cresce, porque a menina morre, mas você vai continuar com esse grande tesouro que é o grande diamante”, como um presente. Então é interessante a gente observar isso. Ela não precisaria negar toda a infância, ela traria com ela (o bichinho), mas de outra maneira. Aquela menina, daquele jeito, não pode continuar, mas o que a representa pode. O sonho trouxe isso de forma muito objetiva.

Não é um grande problema não se lembrar dos sonhos, mas existem vários motivos que podem estar levando a essa consequência. Por exemplo, você pode estar afastada do inconsciente. Essa consciência está afastada do inconsciente, não recebe ou registra muito a informação. Ou a consciência não está pronta para acessar esses conteúdos. Existem N motivos, mas aí teríamos de ampliar no sentido da pessoa, da consciência como ela se apresenta no momento. Lembrem, se o sistema psíquico é autorregulador, como propõe Jung; se o consciente funciona por compensação e ela pode ser complementar ou oposta, se não há lembrança, pode estar havendo uma oposição muito grande e a manifestação pode ocorrer de outra forma. Os sonhos são importantes, eles trazem conteúdos do inconsciente, mas não são apenas eles que permitem acesso a esses conteúdos. Eles podem se manifestar através das doenças, por exemplo.

Freud colocava que o sonho dissimula uma situação. O Jung fala que não é que ele dissimula ou esconde uma situação que a consciência não consegue olhar, mas que não acessamos porque não entendemos essa linguagem simbólica.

“Poesia significa deixar ressoar atrás das palavras a palavra primordial” (Gerhart Hauptmann)

Nós poderíamos traduzir analogamente que a poesia deixa expressar nas palavras os arquétipos.

“O segredo da criação artística e de sua atuação consiste nessa possibilidade de reimergir na condição originária da participation mystique, pois nesse plano não é o indivíduo, mas o povo que vibra com as vivências; não se trata mais aí das alegrias e dores do indivíduo, mas da vida de toda a humanidade” (Jung, em “Psicologia e Poesia”, 1930)

Se vocês quiserem saber um pouco mais como Jung trabalha a questão da arte, vocês vão encontrar no volume 15 das Obras Completas (“O Espírito na Arte e na Ciência”). Não é diferente do que o Cassirer fala:

“A arte nos apresenta os movimentos da alma humana em toda a sua profundidade e variedade; (...) O que sentimos na arte não é uma qualidade emocional simples ou única, é o processo dinâmico da própria vida: a oscilação contínua entre pólos opostos, entre alegria e pesar, esperança e temor, exultação e desespero”. (Ernst Cassirer, “Ensaio sobre o Homem”, p. 244)

É a emergência de conteúdos que transitam, que navegam entre polaridades, certo?

Tudo isso eu trouxe para mostrar exatamente essa questão do homem contemporâneo. Ele faz uma crítica enorme ao homem massificado do nosso tempo, aquele que quase vira um robô. Ele é inconsciente, vai no val-da-valsa, que ao mesmo tempo vai naquele polo oposto da razão – tudo ciência, tecnologia -, se afasta dessa matriz. Ao se afastar, não significa que ela deixa de existir. Ela se manifesta de forma negativa, porque não desenvolvida, não considerada. Tudo aquilo que é negado não deixa de existir, mas se manifesta na mesma proporção em que foi negado. Se você é rechaçada, na medida em que puder se expressar, você vem com tudo. Da mesma forma os conteúdos do inconsciente. Por isso vemos tantas catástrofes. Ele falou que não é à toa que assistimos a tantas catástrofes (ele se referia às grandes guerras, atrocidades, abusos do homem sobre o próprio homem). Todas as manifestações negativas porque os conteúdos não é considerada, é negada e, na medida em que é negada, se manifestará na mesma proporção.

“O indivíduo é uma realidade única. Quanto mais nos afastamos dele para nos aproximarmos de ideias abstratas sobre o Homo sapiens, mais probabilidades temos de erro. Nesta época de convulsões sociais e mudanças drásticas é importante sabermos mais a respeito do ser humano, pois muito depende de suas qualidades mentais e morais. Para observarmos as coisas na sua justa perspectiva precisamos, porém, entender tanto o passado do homem quanto ao seu presente. Daí a importância essencial de compreendermos mitos e símbolos”. (Jung, em “O Homem e seus Símbolos”)

Vejam que isso foi escrito no final dos anos 1950 e início dos anos 1960. Ele terminou de escrever esse texto alguns meses antes de morrer, em 1961. Parece que ele escreveu ontem, mandou um e-mail para nós.

A arte expressa. Aqui temos o “Jardim das Delícias”, de Hieronymus Bosch (ou El Bosco, como é conhecido na Espanha). É só para mostrar a interpretação disso. Início do século 16. Se observarmos, existem muitas interpretações mostrando que à esquerda seria o paraíso, o centro é o mundo terrestre após a Queda e, à direita, o inferno, onde ele acaba sendo punido por seus pecados.

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Se repararem, não há diferença do paraíso para o mundo terrestre, mas há do terrestre para o inferno. A interpretação que faço é que paraíso e o mundo terrestre se referem a antes da Queda, uma passagem no Gênesis que mostra justamente o Jardim das Delícias, no paraíso. Ao passo que `à direita não seria o inferno, mas o mundo em que estamos inseridos, com todos os seus instrumentos e aspectos – facas e afins – produzidos pelo homem. Não seria o inferno, mas o inferno na Terra. Não uma punição pelos pecados, não é uma pregação, mas uma mostra da condição humana, ou seja, de você sair desse momento de possibilidades e o que é feito dessas possibilidades na vida terrena. Pensando psiquicamente, há possibilidades psíquicas e nós as realizamos na consciência.

Em 1960 ele diz numa entrevista:

“A ciência convenceu-nos que a vida humana é insignificante, e a história contemporânea demonstrou, de fato, diante de nossos olhos, como as vidas humanas não valem nada. E o indivíduo está tão profundamente convencido de sua desvalia, de sua nulidade, que não faz esforço nenhum para se desenvolver interiormente, de qualquer modo. É irremediável; o indivíduo não é nada e, naturalmente, isso é corroborado pela falsa noção de que o indivíduo nada é. Mas o indivíduo é o veículo da vida. Cada indivíduo é um portador de vida, e a vida só é produzida por indivíduos. Ela não existe em si mesma, não existe a vida de milhões. Isso é absurdo, mas milhões de indivíduos são outros tantos veículos de vida e, para cada um deles, o problema do indivíduo é o problema todo” (Jung em entrevista em 7/6/1960).

No “Aion” ele vai criticar exatamente esse homem massificado. “Aion” é o volume 9/2 das Obras Completas. Ele trabalha com a imagem de Cristo como símbolo da totalidade psíquica (lembrem, cristianismo base do pensamento ocidental, então Cristo como a figura que representa a totalidade). Ele vai fazer essa análise mostrando como essa figura pode representar a totalidade psíquica, como se fosse uma projeção, uma transferência da totalidade para essa figura, por isso que ele perdura. A crítica que ele faz ao homem moderno, o homem massificado, que perdeu a ligação com o divino... Na medida em que Nietzsche decretou a morte de Deus, o quanto o desenvolvimento científico, o positivismo lógico do século 19, o materialismo científico, levaram a esse distanciamento dessa matriz. Jung não critica o desenvolvimento da consciência – é importante, aliás, justamtene porque o desenvolvimento psicológico significa criação e ampliação da consciência. O conceito de individuação é esse, criação e ampliação de consciência. Mas consciência não significa saber que existe alguma coisa, ela implica algo mais profundo, levar em consideração não só o objeto externo, mas o interno. É uma reflexão ética, que leva em consideração a consciência e o inconsciente.

Para exemplificar: se vocês pegarem na Bíblia a passagem em que Oséias recebe uma ordem do Senhor para casar com a prostituta e o faz, ele é criticado. Como uma pessoa casa com uma prostituta? Mas ele segue a ordem do Senhor. Vamos traduzir numa linguagem psicológica. É como se a atitude dele levasse em consideração o chamado interno, ou seja, a psique mais profunda, a totalidade psíquica, o self. Então, muitas vezes a gente faz coisas... Não estou dizendo que tudo que vem do self, do inconsciente coletivo seja adequado, bom, não é isso. Temos de ter a junção das duas esferas: aquilo que emerge do inconsciente e aquilo que a consciência faz, uma reflexão crítica a partir disso, para ver oq eu é importante ou não. Por exemplo, o que a gente vê na história de Jó. Se Jó não tivesse batido que esperava uma defesa de Deus contra Deus, é muito simbólico, emblemática essa frase dele. Se ele tivesse simplesmente aceito que tinha sido ganancioso, que estava errado, teria só sucumbido. Ele aguenta firme toda a aposta que ele nem sabe que Javé fez com o demônio, nem sabe disso, mas ele aposta na sua conduta da consciência. Então essa é outra história também, mas é isso que quero dizer aqui: a união da consciência com o inconsciente. Nem uma coisa, nem outra, mas a junção das duas.

“Se os conceitos metafísicos já não exercem quase nenhum fascínio sobre os homens, certamente não é pela falta de originalidade e primitividade da alma europeia, mas única e exclusivamente porque os símbolos tradicionais já não exprimem aquilo que o fundo do inconsciente quer ouvir, como resultado dos vários séculos de evolução da consciência cristã. Trata-se de um verdadeiro antiminion pneuma (um espírito de contrafação), de um pseudoespírito de arrogância, histeria, imprecisão, amoralidade criminosa e sectarismo doutrinário, gerador de refugos espirituais, de sucedâneos da arte, de gagueiras filosóficas e de vertigens utópicas, suficientemente bons para serem ministrados, qual forragem, em grande quantidade, ao homem massificado do nosso tempo. É assim que se nos afigura o espírito pós-cristão”. (Jung, em “Aion”, p. 33)

Por “conceitos metafísicos” ele se refere ao cristianismo. Como acreditar que Cristo veio para nos salvar? A gente não fez nada, por que precisamos ser salvos? Como acreditar que houve uma fecundação, que ele nasceu de uma virgem? Cientificamente falando não existe isso. Como acreditar, nós, do século 20, nestes absurdos?

Então Jung, como foi acusado muitas vezes, está querendo formar uma igreja? Está pregando? Não é isso. Ele vai dizer para o padre Victor White, de Oxford, que entra em contato com ele em 1945 e com quem troca muitas correspondências, a respeito do conteúdo religioso e o significado psicológico disso. É um padre que entende, até certo ponto, o que Jung diz – porque quando Jung publica o “Resposta a Jó” o padre não aguenta e se afasta. Jung disse ao padre que não combatia o cristianismo, nem queria fundar uma nova seita, uma nova igreja; ele achava que o simbolismo do cristianismo precisaria ser visto de uma nova forma, com uma nova roupagem, adequada ao século 20, época do desenvolvimento científico, do racionalismo, pós-iluminismo.

Ainda em 1960, numa carta a Miguel Serrano, ainda nessa linha da religiosidade que perdemos, que o sagrado ficou de lado, que estamos apenas voltados à consciência unilateralmente:

“O fato de um Deus arcaico formular e expressar a dominante de nosso comportamento significa que precisamos encontrar uma nova atitude religiosa, uma nova noção de nossa dependência de dominantes superiores. Não sei como isso seria possível sem uma renovada autocompreensão do ser humano, que inevitavelmente tem de começar pelo indivíduo. Temos os meios de comparar o ser humano com outros animalia psíquicos e dar-lhe novo ordenamento que lança uma luz objetiva sobre sua existência, isto é, como um ser operado e manobrado por forças arquetípicas, em vez de sua ‘livre vontade’, isto é, seu egoísmo arbitrário e sua consciência limitada. Deveria aprender que ele não é o senhor de sua própria casa e que deveria estudar cuidadosamente o outro lado do seu mundo psíquico que parece ser o verdadeiro soberano de seu destino (...)”

O que ele se refere é ao mundo psíquico anterior, aquela primeira frase que apresentei a vocês no primeiro dia, que parece estarmos olhando o mundo do lado errado. Em primeiro lugar é preciso que esse homem moderno... Essa autocompreensão significa olhar para o seu próprio comportamento, principalmente os “aspectos sombrios”, que negamos ter. “Eu não sou invejosa”, “eu não quis puxar seu tapete”. Essa coisa de sempre justificarmos, “fulano fez tal coisa, mas também...” Vemos isso em diferentes níveis e ambientes, a culpa é sempre do outro. Jung falava que essa autocompreensão do humano é olhar para os seus próprios aspectos, principalmente esses que denunciam que o mal está em mim também. Não sei se as pessoas ainda falam isso, mas existia um ditado que dizia “macaco enrola o rabo, senta em cima e fala do rabo do outro”. Ou seja, é o que a gente faz. A gente esconde nossos aspectos negativos, aquilo que não queremos olhar – porque queremos ser legais, perfeitos. Essa autocompreensão a que ele se refere é exatamente isso. O primeiro passo da autocompreensão é olhar para os aspectos que mais negamos em nós mesmos antes de apontar para o outro.

“Nós precisamos urgentemente de uma verdade ou de uma autocompreensão semelhante à do Antigo Egito, como eu a encontrei ainda viva entre o pueblos. O chefe de seu culto, o velho Ochwiah Biano (Lago da Montanha) me disse: nós somos o povo que vive no teto do mundo, nós somos os filhos do Sol que é nosso pai, nós o ajudamos todo dia a nascer e a atravessar o céu. Não o fazemos só por nós, mas também por todos os americanos. Por isso não deveriam interferir em nossa religião. Mas se continuarem a fazê-lo (por meio de missionários) e nos perturbarem, então verão que em dez anos o Sol não mais se levantará”. (Jung, em carta a Miguel Serrano, set/1960)

Quando Jung visitou os índios pueblos no Novo México e falou com o Lago da Montanha, ele mostrou a importância e o objetivo de seu povo: ajudar o Sol a nascer e atravessar. Porque assim o dia vai acontecer. Ele não está ajudando apenas o próprio povo, mas a toda a humanidade. Ou seja, qual é o objetivo, o sentido da nossa vida? Qual o sentido que temos hoje, no século 21?

“Naturalmente, sempre se coloca novamente para mim o problema das relações da simbologia e do consciente com a religião cristã e com as outras religiões. Não só deixo uma porta aberta à mensagem cristã, como a considero primordial para o homem do Ocidente. Ela deve, no entanto, ser vista sob um novo ângulo, que corresponda às transformações seculares do espírito contemporâneo, sem o que será relegada à margem do tempo e a totalidade do homem não se encontrará mais inscrita nela”. (Jung, em “Memórias, Sonhos e Reflexões”, p. 185)

A mensagem cristã deve ter algum sentido, algum significado. Que nós, com a nossa racionalidade, acabamos perdendo ou nos afastando. É isso que ele disse. Ela deve ter algum sentido ou significado porque ela não se tornou aqueles deuses de muitos braços que se tornaram peças de museu – ele está falando dos deuses da mitologia grega, egípcia, hindu. Então essas divindades acabaram sendo relegadas, se tornaram peças de museu, porque não significam, não trazem um sentido mais para o ser humano da atualidade, mas o cristianismo continua trazendo se olharmos ao redor – quantas igrejas e templos estão aparecendo cada vez mais? As pessoas de hoje buscam um sentido, mas como achá-lo? Se não for pela fé, pela psicologia – é a proposta de Jung. De que forma? Nesta autocompreensão, autorreflexão.

“Se bem que tenhamos como homens nossa vida pessoal, nem por isso deixamos de ser, em larga medida, os representantes, as vítimas e os promotores de um espírito coletivo, cuja duração pode ser calculada em séculos. Podemos pensar durante toda a vida que seguíamos nossas próprias ideias, sem descobrir que fomos os comparsas essenciais no palco do teatro universal, pois há fatores que ignoramos e que entretanto influenciam poderosamente nossa vida por serem inconscientes”. (Jung, em “Memórias, Sonhos e Reflexões”, p. 88)

Por exemplo, achamos que temos o nosso estilo próprio. Naquela questão dos nossos papéis, ou da própria roupa que a gente usa, temos um estilo próprio. Não temos, porque seguimos algum estilo, copiamos alguma coisa. Até porque se não fizermos assim, não nos adaptamos ao mundo externo, não somos recebidos por ele. Para que nós tenhamos um desenvolvimetno adequado, a gente não sucumba, temos de nos adaptar ao mundo externo também. Jung não criticou o mundo externo em favor do interno, mas para que você transite entre essas duas esferas, para que possa se integrar, trazer essas duas esferas para a sua vida normal.

Não é que seja uma solução e o homem moderno vai deixar de sofrer. Sofrer significa “passar por”. Tem um psiquiatra russo-francês, Eugène Minkowski, que disse que “um homem pode passar a vida sem adoecer, mas não vive sem sofrer”. Quando vi esse texto, achei bárbaro. Foi um psiquiatra do século 20, mais jovem que Jung. Como é junguiana essa frase. Fui procurar a respeito dele e lógico que é junguiana, ele fez a residência em psiquiatria no hospital em que Jung trabalhou.

Se você passar pela vida, você não viveu, você passou, foi. Você não teve a vivência, a experiência. Então você pode estar imune ao sofrimento porque não viveu. Mas viver significa sofrer, passar por experiências. Então, não é que a autocompreensão vai eliminar o sofrimento, mas fazer você ter uma atitude nova para lidar com ele. E provavelmente o adoecimento será menor.

Isso aqui é o final do que ele registra no “Livro Vermelho”. Só lembrando que ele fez os registros das próprias vivências e que foram a base do que ele desenvolveu depois. Ou seja, quando ele encarou, enfrentou todas esses aspectos, o que foi muito doloroso, ele achou que estava enlouquecendo, ele conseguiu transformar tudo isso numa teoria belíssima e que não fica só na especulação teórica, mas diz muito para a nossa vida inclusive hoje. Ele deixou de lado o “Livro Vermelho” em 1928 e o retomou em 1959, e escreveu isso:

“Trabalhei neste livro durante dezesseis anos. Em 1930, meu contato com a alquimia me afastou dele. Em 1928, situa-se o começo do fim, quando Wilhelm pôs ao meu alcance o texto do tratado alquimista O Segredo da Flor de Ouro. O conteúdo deste livro encontrou, então, o caminho da realidade e não pude mais trabalhar nele. Isto poderá parecer uma loucura a um observador não avisado. Teria podido sim, com efeito, converter-se em algo semelhante se eu não tivesse posto um dique e captado a poderosa força dos acontecimentos originais. Sempre soube que as experiências continham coisas preciosas e foi por isso que nada de melhor soube fazer que as traduzir por escrito num livro ‘precioso’, isto é, de grande valor, e representar as imagens que reapareceriam enquanto eu as descrevia em pinturas tão fiéis quanto possível. Sei o quanto esta tentativa era terrivelmente inadequada; porém, a despeito de ser um enorme trabalho e de alguns desvios, permaneci fiel a ele; mesmo se qualquer outra possibilidade nunca...”

Ele não terminou a frase e morreu em 191. Isso tem um significado simbólico enorme – a gente pode pensar um monte de coisas. Será que daria para colocar um ponto final na experiência psíquica? Não, né? Parece que a própria vida do Jung mostrou isso, como ele apresenta. Não dá para colocar um ponto final, estamos em desenvolvimento o tempo inteiro, então é continuar. Ou seja, se ele não tivesse uma consciência estruturada a tal ponto que ele conseguiu pegar esses conteúdos do inconsciente e transformá-los, ele teria enlouquecido. Seria mais um no hospital.

“Minhas obras podem ser consideradas como estações de minha vida; constituem a expressão mesma do meu desenvolvimento interior, pois consagrar-se aos conteúdos do inconsciente forma o homem e determina sua evolução, sua metamorfose. Minha vida é minha ação, meu trabalho consagrado ao espírito é minha vida; seria impossível separar um do outro”. (Jung, em “Memórias, Sonhos e Reflexões, p. 194)

Não é à toa que o volume 5 originalmente chamava “Metamorfose e Símbolos da Libido”.

E aí, para a gente encerrar, é um texto razoavelmente longo, mas foi escrito nos anos 1960. É a crítica que ele está mostrando, que ele faz, mostrando qual é o caminho desse homem moderno que se unilateralizou, que se afastou de sua natureza e desenvolveu demasiadamente o lado abstrato, científico, intelectual, se afastando da sua outra parte, a ponto de a gente ter, inclusive, o afastamento do próprio corpo. As doenças muitas vezes aparecem para lembrar que você tem corpo. Você só lembra que tem dedinho do pé quando quase arranca no pé do sofá. Da mesma forma que o corpo aparece desta maneira, ou as doenças podem ser uma expressão para você lembrar que não é só a cabeça.

Eu tive uma paciente há muito tempo que trazia exatamente as temática. Era uma pessoa da ciência, pós-doutora nas ciências exatas, e apareceu no consultório encaminhada pelo médico porque teve um processo depressivo profundo. Saiu de casa por conta de uma crise de fígado, foi para o hospital, fez alguns exames, um ultrassom e o médico percebe algo estranho que não sabe identificar. Mandou para o ortopedista porque era algo na coluna. Resolveu a questão do aparelho digestivo e mandou para o ortopedista, que constatou que ela tem como se fosse, na lombar, um encavalamento e quem tem isso chega a ter uma dor insuportável, segundo o médico. Ela não sentia nada. Estava completamente desconectada.

Ela foi para a terapia. Um dos primeiros sonhos que ela tem quando começou o processo da psicoterapia é que ela vê um vulto que não sabe identificar se é um homem ou mulher, andando num cômodo sem móveis, numa penumbra. O vulto vai andando, tem uma capa escura, e de repente vem uma espada que reluz, brilha, e corta a cabeça do corpo, que se separa. Imaginem. Ela estava exatamente assim, era só cabeça, cabeça ambulante que só pensava. Ela não tinha sensações corporais, não sentia dor. Então aqui é essa crítica que ele faz:

“Apesar da pretensão orgulhosa de dominar a natureza, somos ainda assim suas vítimas, porque não aprendemos a nos dominar pessoalmente. Lentamente, mas inelutavelmente, caminhamos para o desastre. Não há mais deuses a quem possamos recorrer. As grandes religiões do mundo sofrem de uma anemia aguda, uma vez que as divindades propícias desertaram dos bosques, dos rios, das montanhas, dos animais, enquanto os homens deuses foram relegados a nosso inconsciente. Vivemos na doce ilusão que eles levam uma vida ignominiosa entre as relíquias do nosso passado. Nossa vida presente é dominada pela deusa razão, nossa maior e mais trágica ilusão. É graças a ela que vencemos a natureza. Mas isso não passa de uma mensagem publicitária, porque esta pretensa vitória sobre a natureza produziu o fenômeno desastroso da superpopulação, sem mencionar nossa incapacidade mental para adotar as medidas políticas urgentes e necessárias. Continuamos a admitir, como algo natural, os conflitos entre os homens, e cada qual procura afirmar, constantemente, sua superioridade sobre os demais. Como se pode falar de vitória sobre a natureza?

Como toda mudança deve principiar em alguma parte, é o indivíduo isolado que terá a intuição e que promoverá a transformação. Esta mudança só pode germinar no indivíduo e seu agente pode ser qualquer um de nós. Ninguém pode ficar de braços cruzados, olhando em sua volta, até que um outro realizar o que o primeiro não quis fazer. Infelizmente, nenhum de nós sabe exatamente o que fazer; talvez valesse a pena que cada um interrogasse a si mesmo, a fim de descobrir alguma coisa no seu inconsciente que fosse útil a todos. A consciência parece ser incapaz de nos auxiliar. O homem de hoje percebeu dolorosamente que nem suas religiões, nem suas diversas filosofias, fornecem ideias fortes e dinâmicas que lhes deem a segurança necessária para enfrentar o estado atual do mundo. Eu sei o que diriam os budistas: tudo iria bem se as pessoas seguissem o caminho múltiplo do dharma (lei) e aprendesse a conhecer verdadeiramente o si.

Os cristãos nos dizem que se as pessoas acreditassem em Deus, o mundo seria melhor. O racionalista afirma que se as pessoas fossem inteligentes e sensatas, todos os problemas seriam solucionados. O trágico é que nenhum racionalista se esforça porque Deus não se comunica mais com ele como fazia no passado. Quando me fazem esta pergunta, penso sempre naquele rabino a quem indagavam por que motivo Deus não aparecia mais aos homens de hoje. O rabino respondeu: hoje não há mais ninguém que seja capaz de se curvar tão baixo”.

Completando, isso foi em 1956 quando ele publicou “Resposta a Jó” (1952), foi uma avalanche de críticas que veio de todas as áreas, da teologia protestante e católica, da filosofia, enfim. E uma pessoa, uma mulher perguntou a ele por que ele poderia ter feito as afirmações que fez. Um pedaço dessa resposta está aqui:

“A importância do ser humano aumentou com a encarnação. Nós nos tornamos participantes da vida divina e temos de assumir uma nova responsabilidade, isto é, a continuação da autorrealização divina que se expressa na tarefa de nossa individuação. A individuação não significa apenas que o ser humano se tornou verdadeiramente humano, distinto do animal, mas que está para se tornar também parcialmente divino. Isto significa praticamente que ele se torna adulto, responsável por sua existência, sabendo que não só ele depende de Deus, mas que Deus também depende dele. A relação do ser humano com Deus deve sofrer certamente uma mudança importante: em vez de louvor propiciatório a um rei imprevisível, ou oração infantil a um pai amoroso, nossa forma de culto e relacionamento com Deus será uma vida responsável e a realização da vontade de Deus em nós. Sua bondade significa graça e luz, e seu lado escuro é a terrível tentação do poder”. (Jung em carta de junho de 1956)

Em 1957, um texto, para encerrar agora de verdade:

“Como no começo da era cristã, coloca-se novamente o problema do atraso moral da humanidade em geral que se mostra hoje inadequada diante do desenvolvimento científico, técnico e social. Muita coisa está em jogo e agora muito depende de sucumbir à tentação de usar seu poder para encenar um fim do mundo? Terá ele consciência do caminho em que se encontra e das consequências que podem decorrer tanto da situação mundial como de sua própria situação psíquica? Sabe ele que se encontra na iminência de perder por completo o mito vital da interioridade do homem que o cristianismo lhe preservou? Consegue ele imaginar o que o espera caso essas catástrofes ocorram? Será que ele realmente sabe que tudo isso significaria uma catástrofe? E, por fim, será que ele se conscientizará de que é ele o fiel da balança?” (Jung, 1957)

Está aí, gente, esse é o sobrevoo que fizemos sobre a teoria do Jung para trazer uma contribuição, ou tentar mostrar para vocês a contribuição que o pensamento junguiano pode trazer para a nossa vivência atual, para o nosso mundo de hoje, e o quanto essa reflexão nos coloca em contato conosco mesmo, e o quanto isso tem significado com relação ao mundo em que vivemos.

A nossa responsabilidade, a parte que nos cabe. Acho que se cada um cuidar do seu quadradinho, se cada um fizer isso, o que é muito, acho que as coisas podem ser um pouco melhores.

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Lilian Wurzba

Psicóloga e supervisora clínica. É professora dos cursos de especialização em Psicologia Junguiana, Psicossomática, Dependências, Abusos e Compulsões (DAC) e Arteterapia e Expressões Criativas do Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa (IJEP), em São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília. Graduada em Psicologia pela Universidade Paulista, mestre e doutora em Religião pela PUC-SP. É Pesquisadora do Nemes (PUCSP), professora da Casa do Saber e do MIS. Autora do livro: "Natureza Irreal ou Fantástica Realidade? Reflexões sobre a melancolia religiosa e suas expressões simbólicas na obra de Hieronymus Bosch"

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Jung: Vida e Obra
Jung e a Alquimia
Os Tipos Psicológicos de Jung
Uma Introdução Guiada e Descomplicada ao Pensamento de Jung
#curtasdosaber Jung e o “Livro Vermelho”
#curtasdosaber Jung e Deus
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