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Recorte de imagem do Livro Vermelho de Jung
Psicanálise - 06 de fev

Jung: Vida e Obra | Parte 2

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Por Lilian Wurzba

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Aviso: este material é uma transcrição do curso “Jung: Vida e Obra”, realizado pela Casa do Saber e pela professora Lilian Wurzba em 2021. Por se tratar de uma transcrição, as frases não seguem necessariamente uma ordem ou linha de raciocínio semelhante às de um texto escrito.

Formação, influências e as ideias próprias

A gente terminou falando sobre a segunda conferência, quando ele diz que está estudando a psicologia racional a partir do Kant, a psicologia empírica a partir de autores que trabalham a telecinese, os sonhos visionários, as profecias, enfim. Essa abordagem que foge à materialidade, que não tem explicação racional para isso, e, por isso, ele então recorre ao Schopenhauer, ao Eduard Von Hartmann e ao Kant. Nós paramos na questão que ele coloca: quando a gente quer conhecer a alma humana, a conheceremos nesses lugares em que ela está presente, onde vive o ser humano. Todos esses lugares onde existe o apaixonamento. O que é isso? São as emoções que experimentamos, não apaixonado no sentido corriqueiro, de senso comum, mas no sentido de um afeto, uma emoção. Para Jung, afeto e emoção são sinônimos, aquilo que mobiliza (emoção, a ideia de movimento; afeto no sentido de nos tocar e nos comportarmos de alguma forma).

Essa questão do conhecimento da alma humana, o conhecimento do ser humano, é um aspecto que continua abordando no discurso de posse da presidência do Clube Zofingia. Ele foi presidente durante um biênio (1897-1898) e em seu discurso ele falou um pouco sobre quais são os objetivos do clube, fazer uma crítica ao materialismo e, principalmente:

“O Zofingia deve formar humanos, não animais políticos, seres humanos que riem e choram, seres humanos conscientes de suas intenções e desejos, seres humanos que sabem que estão vivendo entre outros seres humanos e que devem suportar uns aos outros porque todos estão condenados a serem humanos. Uma tarefa como esta é suficiente para lançar alguém no desespero, pois ela não é menor que limpar os estábulos de Augias, tentando derrubar esta alta montanha de lixo que tem maliciosamente se insinuado entre os homens. Vemos realmente olhar bem para essa nossa missão! É sublime, pois abarca tudo o que nós humanos temos a fazer sobre a Terra. É a tarefa de elevar tanto a nós mesmos quanto aos nossos vizinhos”. (Discurso inaugural de posse da presidência do Clube de Zofingia – semestre de inverno, 1897/98)

Ali quando ele fala “que riem, choram, seres humanos conscientes de suas intenções e desejos”, são as paixões que falamos agora. Ser humano, se for um animal político, é aquele que é moldado dentro de alguns parâmetros, condicionado de determinada maneira e funciona só daquele jeito, de uma maneira mais ou menos robótica, que é o que ele estava criticando no materialismo científico. Se, então e pronto. Aqui ele está ampliando essa ideia de o que é um ser humano, daqueles aspectos que ultrapassam, não que a gente não tenha a nossa racionalidade – que, aliás, é muito importante -, mas ela não é o único aspecto que compõe o ser humano.

“Uma tarefa como esta é suficiente para lançar alguém no desespero, pois ela não é menor que limpar os estábulos de Augias, tentando derrubar esta alta montanha de lixo que tem maliciosamente se insinuado entre os homens.” Não imagine que essa tarefa seja fácil. Formar seres humanos não é uma tarefa fácil. Os estábulos de augias constituem o sexto trabalho dos doze de Héracles, na mitologia grega. Esse sexto trabalho era limpar os estábulos do rei Augias que, havia trinta anos, não eram limpos. Então imaginem a quantidade de lixo que havia lá. Para ser mais exata e mais literal, a quantidade de merda que tinha lá. Como você limpa isso? Héracles acaba fazendo uma aposta de que limparia em um dia. O rei concorda em dar uma parte dos cavalos, achando que seria impossível. Héracles então desviou o curso de dois rios para dentro do estábulo e limpou tudo de uma vez. O que Jung chamou atenção foi a dificuldade de fazer isso. Só que tem uma outra coisa: Jung nasceu em 1875, ou seja, ele está com 22 anos e já faz uma menção à mitologia grega, então a gente já sabe o quando ele conhece do assunto. E mais, na discussão que ele faz no discurso, falando da política, a gente percebe o quanto ele conhece não só das questões políticas internas à Suíça, mas também internacionais, referentes a outros países da Europa.

“É sublime, pois abarca tudo o que nós humanos temos a fazer sobre a Terra. É a tarefa de elevar tanto a nós mesmos quanto aos nossos vizinhos”. Essa preocupação com o outro, não só de elevar a própria nação, mas o vizinho – do ponto de vista político ele diz aqui -, mas essa preocupação com o outro vamos observar em sua obra inteira. O que faz o Jung buscar respostas é um questionamento com relação ao sofrimento do ser humano. A condição humana, essa é uma das bases do que ele vai desenvolver depois. Conhecer a alma humana, ir em busca não só de solucionar problemas pessoais, mas problemas do vizinho, baseado neste conhecimento, isso ele vai aprofundar cada vez mais nessa quarta conferência de 1898, “Pensamentos sobre a natureza e o valor da investigação especulativa”.

A gente começa a ler e percebe que Jung tinha como objetivo continuar na crítica ao materialismo científico e observar qual é o objetivo da pesquisa, se faz sentido ou não. Esse é o panorama da introdução da conferência. No fundo, ele vai aprofundar muito mais o pensamento. É uma conferência altamente filosófica, em que recorre a Kant, Schopenhauer, Eduard Von Hartmann e Nietzsche para discutir essas questões. Ele vai falar do homem moderno e, principalmente, o homem moderno que está afastado de suas bases. Isso a gente vai observar na obra inteira. É o que ele vai desenvolver depois.

“O homem moderno transfere a responsabilidade pela criação da felicidade individual dele para o Estado, isto é, para as relações reguladas legalmente entre ele e seus companheiros”. Veja que em 1898 Jung já faz uma menção à terceirização que vivemos hoje, o quanto transferimos para as leis que compõem a nação, seja ela qual for, para o outro a responsabilidade das suas próprias ações. A busca da felicidade, ele critica dizendo que o homem moderno acha que encontra a felicidade no objeto material, na concretude do objeto. Quanto mais se produz, mais se consome, mais feliz o ser humano é. Ele começa discutindo isso e mostrando que, na verdade, isso é um grande engano, porque para o homem medieval, por exemplo, a felicidade não estava no externo, mas muito mais no desenvolvimento interno, na busca dessa interioridade, muito mais porque o homem medieval era mais religioso, vamos dizer assim. Com o desenvolvimento científico, o homem foi para fora, ele se direcionou para o externo. Então, adquirir bens materiais é aquilo que promove felicidade. É o que a gente vê hoje: o melhor smartphone que será substituído daqui a seis meses, ou o carro tal, ou a viagem tal, enfim. Jung questiona se a felicidade é encontrada fora. A questão da discussão da felicidade não é um privilégio, uma inovação do Jung, isso vem desde a Antiguidade. Aqui ele está querendo fazer uma crítica à ciência. Esse desenvolvimento científico, esse “progresso” do ser humano, baseado no progresso científico. Na verdade, você pode estar em um lugar maravilhoso – se estiver com dor de dente, não conseguir nem olhar para isso. Ou seja, a felicidade não está no local, ou nas coisas das quais você usufrui, ou no conforto que vivencia, porque se você não estiver bem, não vai conseguir experimentar. Conclusão: a felicidade não é objetiva, mas subjetiva. Quando a gente transfere para o outro, a gente nunca alcança, porque cada vez mais nos afastamos de nós mesmos, de nossas raízes.

“O processo de aperfeiçoamento das relações externas arrancou o homem de seu vínculo com a natureza, mas somente do vínculo consciente, não do inconsciente”. O que a gente observa nessa frase? Ele já tem essa ideia que dá origem à psicologia profunda. A psicanálise que é a iniciadora da psicologia profunda, que leva em consideração uma outra esfera da psique humana, que é a esfera do inconsciente. Então ele vai dizer isso – afasta o ser humano da natureza, mas consegue afastar de que forma? Do consciente. Do ponto de vista da vontade, a gente pode se afastar, sim, porque a gente vai para fora, nessa busca do objeto. Porém, do ponto de vista da estrutura psíquica, já embutida nessa ideia, você não pode se afastar, porque faz parte da estrutura, da condição própria do ser humano. Então você pensa que se afasta, mas na verdade não. E isso vai se manifestar de alguma forma, que é o que ele vai desenvolver posteriormente.

O que leva à felicidade? A gente só pode pensar de duas formas: a partir do imperativo categórico do Kant, ou a partir do instinto causal, que é o Eduard Von Hartmann sugere. No que consiste isso? O imperativo categórico do Kant se refere à consciência ética, é aquilo que a gente se sente tranquilo. Sabe aquela história que você deita no travesseiro e dorme tranquilo, como se diz na linguagem comum, de acordo com a atitude que você tomou? Essa é a consciência ética que o Kant fala. Isso me deixa feliz, porque cumpri aquilo a que me propus etc. Não é a única parte, no entanto. Porque o instinto causal que o Von Hartmann propõe consiste nisso: a ideia de instinto está em estudo nesse momento do final do século 19, não só do ponto de vista do animal, mas do ser humano, da sua parte biológica. Como o ser humano funciona? A partir do instinto, ou há mais alguma coisa?

Von Hartmann foi um filósofo seguidor de Schopenhauer, do período do romantismo alemão. Jung devora um de seus livros, chamado “Filosofia do Inconsciente”, um livro muito difícil, com três volumes (sem tradução para o português), e pega emprestadas algumas reflexões do Von Hartmann, trazendo-as para a psicologia. Em que consiste o instinto causal? Que você busca sempre uma coisa que possa explicar a realidade tanto externa, quanto interna. É como a busca de alguma coisa que faça sentido, da “verdade” que todo ser humano traz dentro de si. Na verdade, o instinto causal é um dado a priori, referindo-se não a uma causa material, mas há um pensamento ou ideia por trás disso. Quando eu consigo não só deitar a cabeça no travesseiro e dormir tranquila, com a consciência limpa, mas também entender qual é o sentido daquilo que eu estou vivendo, isso é aquilo que está mais profundamente na estrutura psíquica, a ponto de ele dizer o seguinte:

“Um homem pode sobreviver a todos os seus amigos e parentes, enterrar aqueles que ele mais ama e levar uma existência solitária como um estrangeiro numa época estranha, mas não pode sobreviver a si mesmo e aos fatores internos de sua vida, e não pode enterrá-los, pois eles são seu verdadeiro eu e, assim, são inalienáveis”.

Foi exatamente o que Jung fez. Foi por esse pensamento que ele conseguiu ser fiel àquilo que ele acreditava e chegar a romper com a psicanálise freudiana. Quando ele fala sobre o instinto causal, a busca de sentido, Jung afirma que existe uma causa material, mas não só – há uma finalidade. Se o instinto causal é a priori, ele é transcendente à consciência. Se é transcendente, não é nem material, nem psíquico, embora englobe as duas áreas. Aí está a base do desenvolvimento do conceito de arquétipo que ele vai trazer posteriormente. O arquétipo psicóide, que não é nem material, nem psíquico, mas inclui os dois. Aqui, nessa do instinto causal, pegando o gancho do Eduard Von Hartmann, ele já tem uma “intuição”, vamos dizer assim, do que seria essa estrutura psíquica que ele vai propor depois.

A teoria do Jung não nasce do nada. Tem um estofo muito grande, uma erudição muito grande em todas as áreas, e uma reflexão não só a partir da teoria, mas da prática, da vivência, da experiência. Aí ele vai fazer uma crítica à filosofia corrente:

“A única base verdadeira da filosofia é o que experienciamos de nós mesmos e, através de nós mesmos, do mundo ao nosso redor (...) Nossa filosofia consistiria em inferências esboçadas sobre o desconhecido, de acordo com o princípio da razão suficiente, baseadas na experiência real, e não em inferências esboçadas sobre o mundo interior baseadas no exterior, ou denegando a realidade externa pela afirmação apenas do mundo interior”. Ele continua na crítica ou ao lado materialista, ou ao lado metafísico. |Se você ficar só no lado materialista, você se perde e não consegue explicar; se for para o lado metafísico, também não consegue explicar, porque perde a base da concretude da realidade. Certo? A crítica que ele faz ao materialismo científico não é de que não deve haver ciência, pelo contrário. Na obra inteira ele afirma o quanto é cientista, o quanto a teoria que ele está desenvolvendo e propondo é científica. As bases são científicas, certo? Porém, não é a única fonte. A fonte da experiência é muito importante. Aqui a gente vê as bases do empirismo que o Jung vai desenvolver a obra inteira, ao ponto de ele se autodenominar fenomenólogo, ou seja, de olhar para o fenômeno e, a partir dele, tirar as suas conclusões. É isso que ele está dizendo: a gente vai partir, fazer inferências sobre o desconhecido, partindo desse conhecido, e não somente partindo do campo errado, que não é condizente com aquilo que buscamos. Não dá para você falar do interno a partir do externo e vice-versa, você tem que ir na mesma linha.

“Uma ação instintiva é um ação cuja causa pode ser material, isto é, tangível, m as cuja verdadeira motivação é uma ideia propositada que nos é desconhecida”. Ele observa nesse instinto causal, não só uma causa, mas uma finalidade. Ele vai incluir o aspecto teleológico (telos é “finalidade”, “objetivo”).

A escola inglesa foi a primeira a traduzir os textos em alemão do Jung, e estava interessada no aspecto clínico da teoria junguiana. Por isso, sua psicologia ficou conhecida como “psicologia analítica”, mas Jung a chamava de “psicologia complexa”, porque envolve muitos aspectos. A escola inglesa acabou perdendo aquilo que Jung tem a mais. Além de clínico ele foi um grande pensador, que é o que estamos trazendo aqui para a discussão. Além da esfera da patologia, por onde ele começa, ele pensa mais a condição humana. O sofrimento humano não faz parte só da patologia, mas da vida – sofrer é “passar por”. Não existe a possibilidade de um desenvolvimento de uma vida sem sofrimento, mas o que caracteriza isso, por que o ser humano passa por isso? Não é que o Jung está preocupado em eliminar o sofrimento, ele quer compreender. É diferente.

Existe uma motivação básica para que um comportamento aconteça, para que alguma atitude ou ideia se desenvolva. Claro que essa ideia vai ser estimulada pelo mundo externo – uma causa material -, mas o que motiva é a combinação desse estímulo externo com uma disposição interna. O outro só faz comigo o que eu permito. Se eu não for acionada pela atitude do outro, ela passa sem efeito. Quando Jung pega a vontade cega de Schopenhauer, e o desejo e a imaginação inconsciente de Von Hartmann, ele procura desenvolver a ideia de que há algo a mais no psiquismo humano que promove esse tipo de atitude, ação, pensamento. O que vai ser isso? Essa é exatamente a questão que ele vai trazer depois no conceito de “self”. Temos o eu consciente e o self, uma estrutura mais profunda. Aqui a ideia está bem incipiente e é onde ele vai divergir da psicanálise em relação ao conceito de inconsciente. Para Freud, o inconsciente é o “depósito” do que foi reprimido. Jung concorda que existe a esfera do inconsciente, mas há outra esfera que é matriz de tudo, coletiva. As bases disso estão nessa discussão.

Ao mesmo tempo em que Schopenhauer e Von Hartmann são considerados monistas por Jung, ambos não conseguem considerar a dissonância e os conflitos do coração humano. Mais do que isso, se você olhar para a própria biologia, para aquilo que acontece na natureza, você verá que existem dois princípios antagônicos o tempo todo em luta pela dominação, que a biologia vai definir como base da existência: por um lado, um leva ao repouso, ele alisa, nivela, conduz à morte; por outro lado, existe outro aspecto que dá cor, movimento, vida. Esses dois poderes antagônicos na natureza: é exatamente esta cisão fundamental na natureza que é “a precondição para a ocorrência no organismo físico do estranho fenômeno do sofrimento humano”. Por que o ser humano sofre? Porque em última análise, o ser humano é constituído desses dois poderes. Ele é um ser material (orgânico, físico, biológico), mas também espiritual (psíquico). Por isso temos a manifestação tanto do psiquismo no organismo, quanto do organismo no psiquismo. É isso que nos promove o próprio sofrimento.

Essa questão dos poderes antagônicos é o jogo dos opostos. Isso vai nortear a questão da teoria da própria estrutura psíquica posteriormente. A questão dos opostos não é que o Jung vai lá no Heráclito de Éfeso – também vai –, pega emprestado e aplica na psicologia. Ele busca essa questão dos opostos que está presente em várias esferas. Por exemplo, no próprio Eclesiastes:

Contra o mal está o bem, Contra a morte, a vida; Assim também, contra o homem justo, está o pecador – Esta é a maneira de ver todas as obras do Altíssimo; Elas vão aos pares, por oposição; (Eclesiastes, 33:15-16)

Outro autor que é muito caro a Jung é Jakob Böhme, que diz: “Sem oposição nada pode se tornar aparente para si mesmo; pois se não houver em si mesmo nada que lhe ofereça resistência, irá sempre para o exterior e não se voltará para si mesmo; mas, se não se voltar para si mesmo, para aquilo de onde originariamente veio, não saberá nada de sua condição primeira”. Se eu não tenho algo que se opõe a mim, de alguma forma – pode ser um obstáculo, simplesmente -, eu não tomo consciência de mim mesma, dessa situação. Quantas vezes a gente segue a vida meio que empurrando com a barriga, sem consciência do que estamos fazendo? De repente acontece alguma coisa que serve de obstáculo, opõe resistência, e aí você reflete sobre o acontecimento. Essa questão dos opostos vai ser a base por quê? Porque aí é que está toda a dinâmica psíquica, como ele vai colocar depois. Inclusive no conceito de energia psíquica, que ele vai divergir da psicanálise, no conceito de libido.

Empédocles é mais antigo: “a multiplicidade surge da enantiodromia, a oposição entre o conflito e amor dentro dos elementos”. Essa oposição entre conflito e amor é muito interessante, porque lá na frente Jung vai dizer, no volume 7 das obras completas (“O Eu Inconsciente”), que o contrário do amor não é o ódio, mas poder. Onde há poder não há amor, porque você teria uma relação de submissão; onde há amor não cabe poder, porque se você ama de verdade, você não exerce esse tipo de força sobre o outro. Ele vai caminhando dizendo que “quanto mais perto nos aproximamos das raízes de nosso ser, mais genuína e mais duradoura nossa felicidade se torna”. Ele começa o discurso questionando a felicidade como algo objetivo e a traz como subjetiva, posteriormente. Como nos tornamos mais felizes? Quando nos aproximamos de nós mesmos, das nossas raízes internas. Essa é a base do conceito do processo de individuação, que Jung vai desenvolver bem depois. O conceito de individuação vai aparecer em 1919-20 (aqui estamos em 1898).

A psicologia na época não olhava para isso, porque ele estava em um clube de alunos, estudantes, e ele estudante de medicina. Depois é que ele vai se aproximar disso. Estou indo e voltando para fazer a ponte para vocês entenderem. A gente percebeu quanto ele, tão jovem, tinha uma reflexão sobre esse aspecto. Nessa época ele não sabia que seria psiquiatra, ainda não tinha escolhido a carreira. Ele trabalhava no laboratório, acompanhava um médico histologista que ficou muito bravo quando ele foi para outra área. Na época, a psiquiatria era muito desvalorizada. Era a parte da medicina que ficava completamente à parte mesmo, marginalizada. Jung descobriu que justamente na psiquiatria ele consegue fazer a junção das duas coisas.

Jung encerrou a conferência com essa frase do Nietzsche: “digo-lhe, deve-se, entretanto, ter o caos em si mesmo a fim de dar à luz uma estrela dançante”. Quando Nietzsche escreveu isso, ter o caos para que se possa fazer uma construção, não se constrói nada se não houver o conflito anteriormente.

É interessante notarmos que há um percurso nessas cinco conferências, um elo de ligação. Ele parte da crítica ao materialismo científico da época, vai mostrando a necessidade de se considerar a alma humana (psique) para além do materialismo, mostra como o conhecimento da alma e de si mesmo é importante, que bases filosóficas temos para isso e, principalmente, quando começamos a discutir a partir do instinto causal (do Von Hartmann, a busca do sentido), você desemboca na religião, não tem outra alternativa. Religião no sentido amplo, não institucional. Pode ser qualquer tipo de instituição religiosa. Quando morre um ente querido, muita gente quer entender e manter o contato com esse ente querido e vão para o centro espírita buscar uma psicografia. Quando alguém está muito doente e você não sabe o que vai acontecer, ou numa crise de vida muito grande, você apela para tudo quando é coisa – vai à igreja, acende vela, no templo budista, evangélico. Eu me lembro, há muitos anos, quem é mais velho talvez lembre também, teve outro “curandeiro” de Minas Gerais, o Zé Arigó. Tinha uma caravana de pessoas que iam lá. Por que as pessoas iam lá? Porque estavam desesperadas. Normalmente eram pessoas que tinham diagnósticos muito terríveis, prognósticos ruins e iam atrás de um milagre. Quando busco sentido, em última instância desembocamos na religião. A quinta conferência trabalha exatamente o tema da religião, não questionando a existência de um deus, mas partindo do que a filosofia e teologia modernas colocam – no momento estava em discussão a teoria de Albrecht Ritschl.

A conferência foi em janeiro de 1899. A proposta de Ritschl era, em suma, que na união mística ocorre quase uma alucinação. Ele oferece uma base epistemológica kantiana, inclusive, que, segundo Jung, é muito bem elaborada. Há um furo, no entanto. Ele diz que alguém teve uma experiência lá atrás e relatou nos evangelhos. Nós, depois, lemos isso e nos é inculcado, ao mesmo tempo, o valor disso, que foi acrescentado na época da vivência lá atrás. Entenderam? O que nós temos? O que é subjetivamente dado a partir da consciência e da sensação que experimentamos. Quando alguém diz que viu Cristo, que se relacionou com Cristo – como as místicas renanas, por exemplo -, está alucinando, mentindo (do ponto de vista dessa teoria).

Por que vamos perder a tradição e a raiz do homem ocidental? Porque, na verdade, quando se fala isso, a filosofia moderna contribui ao começar a analisar a figura de Cristo como um “homem normal”. Se considerarmos um “homem normal”, vamos considerar a figura história e esquecer que é a “encarnação de Deus”, um homem, mas Deus também (do ponto de vista da religiosidade). Como compreender isso? Jung não vai buscar a compreensão nos modernos. Ele critica a teologia mostrando o furo que existe, mas não vai explicar nada. Esse assunto (religião) vai ser muito considerado por Jung nas obras da maturidade, depois de 1940.

Jung fala em 1899 o que vemos acontecendo hoje:

“Naturalmente, esses experimentos e concessões reduzem substancialmente as chances de converter o mundo, e já estamos vendo sinais de que finalmente seremos conduzidos a empregar técnicas do exército da salvação, entulhar os serviços religiosos com toda espécie de invenções engenhosas, igrejas decoradas externa e internamente com muita ostentação, instalar fontes batismais e mesas de comunhão que giram ao som de música e vêm equipadas com mudanças periódicas de cenário, e colocar, em lugares apropriados, máquinas de sermões automáticas que simultaneamente funcionam como altares e quem sob a inserção de uma moeda, rodará um sermão não mais que por dez minutos, sobre algum tópico desejado – tudo simplesmente a fim de prevenir, com este ruído, o aborrecimento mortal que está discretamente, mas sem dúvida, tomando conta da vida religiosa”. (“Pensamentos sobre a interpretação do cristianismo, com referência à teoria de Albrecht Ritschl”)

Ele propõe que não se queira medir esse homem-Cristo, considerando-o como homem normal, mas que se deixe o mistério. A crítica dele vai na direção de que se intende acabar com o mistério, que faz parte da vida. Quando ele é acusado de místico, Jung afirma que se for para considerar o ponto de vista do misterium, sim, seria místico. Da mesma forma que o acusavam de ser místico por falar do misterium, teriam de acusar Freud de pervertido sexual. Como ele termina isso?

“Deixo para todo homem que deseja ser um cristão decidir se ou não uma unio mystica é possível. E todo homem que carrega esse nome com honra chegará a uma decisão verdadeira, pois Cristo viu a si mesmo como alguém que possuía tanto habilidade, quanto desejo de permanecer com seu poro ‘mesmo até o fim do mundo’. Esta é uma visão perigosa e inevitavelmente traz consigo aquele perigo temido por Ritschl, a saber, aquele que elimina qualquer possibilidade de distinguir entre realidade e alucinação (...) Não há um único elemento da civilização que possa vir a ser um ganho sobre os ensinamentos cristãos. Tudo passa para o segundo plano diante de uma grande questão, aquela da espiritualização interior do indivíduo e a concomitante desintegração da ordem existente da natureza. Cristo veio para trazer não a paz, mas a espada, pois ele desencadeia o conflito da vontade dividida, dualista.”

Essa ideia sobre a figura de Cristo vai ser abordada na obra posterior. Então Jung vai falar do tema “psicologia e religião” a partir dos anos 1940 de forma objetiva. Ele vai publicar três obras principais, o que chamo de trilogia: “Interpretação psicológica do dogma da trindade” (1948), “Aion: estudos sobre o simbolismo do si-mesmo” (1951) – já falando da figura de Cristo abordando-o como símbolo da totalidade psíquica, o self – e depois desemboca em “Resposta a Jó” (1952), onde fecha isso para considerar a questão do mal. Essa oposição bem-mal, presente no cristianismo, é criticada de forma feroz por Jung, com muita profundidade e extensão, depois em sua obra. Ele faz um paralelo com a psique humana, não discute a existência ou não de Deus – Jung não se preocupa com isso, uma vez que, do ponto de vista científico, é impossível provar a existência de algo metafísico. O que ele pode provar ao longo da história da humanidade, a partir dos registros históricos, é que existe na psique humana uma imago Dei, uma imagem divina, seja essa imagem qual for. Pode ser Shiva, Zeus, Javé, Cristo, qualquer nome que se queira dar. A imagem que representa uma totalidade que inclui tudo – a origem do mundo e do ser humano – está presente no psiquismo humano. Observamos que os primeiros pensamentos, essas cinco conferências enquanto estudante de medicina, já contêm o gérmen de tudo que Jung desenvolverá depois.

Depois das conferências, Jung se forma em medicina. Quando ele faz a escolha por psiquiatria, está estudando para os exames finais. Ele encontra um livro de Richard von Krafft-Ebing, que é um livro de psiquiatria, um manual, e ele começa a introdução. Aí dá o clique de fazer psiquiatria, porque nessa apresentação, ele entende que vai poder unir personalidade número 1 e 2, unir espiritual e material, unir a natureza biológica e a alma humana, então vai poder fazer essas junções apenas no campo da psiquiatria.

Em 1900 ele se forma, assume o cargo de assistente em Burghölzli, em Zurique, um hospital psiquiátrico, e mergulha na psiquiatria tradicional ainda. É um recém-formado, não acredita que tenha estofo suficiente para propor alguma coisa ainda, está aprendendo, tem humildade suficiente para entender sua capacitação no momento. Em 1902 apresentou sua tese “Sobre a psicologia e a patologia dos fenômenos chamados ocultos” (está no volume 1 das Obras Completas), em que ele faz uma pesquisa com o espiritismo de mesa. Ele estuda uma médium, que depois a gente vem a saber que era prima dele, para poder entender o que seria, do ponto de vista psicológico, essa manifestação. Todas as pesquisas, observações e buscas que ele faz no campo da religião não são para o entendimento do metafísico, mas para o entendimento do funcionamento humano. É muito interessante porque em 1902 e 1903 ele vai estudar com o Pierre Janet no Collège de France. A escola francesa queria saber qual era a base, o que justificava a dupla personalidade – o sonambulismo, como era conhecido na época. Para isso, tanto Janet quanto outros buscaram pesquisas em diversas áreas. Uma das áreas era justamente as manifestações espíritas, psicografias. O espiritismo estava em voga e a ideia era que, olhando para as manifestações que a pessoa está apresentando, poderia se entender como se constitui a personalidade humana. Jung não fugiu à regra e também estudou isso. Independente, e sem conhecer, a obra de Théodor Flournoy, que foi uma importante figura posterior na carreira de Jung, a ponto de ele dizer assim: “muitos dizer que sou discípulo de Freud e que ele teria uma influencia muito grande na minha psicologia; se sou discípulo de alguém, é de Théodor Flournoy”, que era um psiquiatra muito mais velho e que também tem uma obra publicada, um estudo de uma médium sobre a fala, a linguagem cifrada dessa médium.

Em 1903 a 1905 ele vai fazer os estudos experimentais sobre associações de palavras em pessoas normais e patológicas. Quando ele volta do Collège de France para Zurique, há uma vaga no hospital e ele reassume essa vaga. Lá eles estão desenvolvendo a aplicação desse teste de associação de palavras (que não foi desenvolvido por Jung, mas por Francis Galton) e eles estão querendo fazer um diagnóstico diferencial: saber a priori se aquele resultado diz respeito a uma esquizofrenia, uma psicose maníaco-depressiva, transtorno bipolar, uma histeria, uma neurose obsessiva, enfim. Ele assumiu a responsabilidade desse experimento junto com Franz Riklin, antigo colega de faculdade. Os dois então chegam à brilhante conclusão de que não dá para fazer o diagnóstico diferencial, mas descobrem que existe alguma coisa nesse teste de associação de palavras... O que ele é? Eu falo uma palavra, acabo de falar, começa a cronometrar até a resposta que ele me dá. Eu falo “casa”, a primeira palavra que ocorrer (tem um certo critério, não pode ser sinônimo, não pode ser isso, aquilo), ele tem que me responder alguma coisa, eu marco o tempo de reação que ele levou para responder e marco qual é a palavra. Depois que apliquei as cem palavras, retomo de novo as mesmas palavras para medir o tempo e ver se houve diferença. O que eles perceberam? Em algumas palavras havia um tempo de latência muito grande, uma extrapolação do tempo de reação que a pessoa teve em determinadas palavras. Esse é o exemplo de um funcionário de um hospital que ajudava muito Jung e um dia faz o teste. Jung observou um tempo muito longo nas palavras “faca”, “lança”, “bater”, “pontiagudo” e “garrafa”.

Jung afirma desconhecer que ele havia passado por uma situação de briga envolvendo o esfaqueamento de alguém. O funcionário era do interior e havia esfaqueado uma pessoa numa briga, ficou um tempo preso e tinha muita vergonha disso. Jung descobriu por meio do teste. Nisso, Jung ficou conhecido como “bruxo”. Qualquer diagnóstico que não conseguia se fazer, mandavam para o Jung, inclusive presidiários que não queriam confessar. Se o cara não queria confessar o crime, eles mandavam para o Jung; se ele se negasse a ir, era como assinar a confissão; se ele fosse, seria descoberto. Isso está na base do detector de mentiras que virá depois.

Outra situação interessante de observar foi o caso dessa moça que ficou muito famoso, inclusive, foi por causa desse teste de associação de palavras que eles descobriram o tempo de reação que dá origem ao conceito de complexo. No início, chamava-se complexo de tonalidade afetiva: se o tempo de reação é muito longo, significa que a pessoa foi tomada por um afeto muito grande e demora para voltar ao normal. No caso dessa moça é mais interessante: o funcionário não tinha uma psicopatologia, mas ela sim. Ela foi internada com um surto esquizofrênico, classificada como psicótica, com um prognóstico péssimo. Jung era um médico, ainda recém-formado e sem tanta bagagem assim, que se achava devedor dos médicos mais velhos da psiquiatria tradicional e tinha um certo cuidado em fazer colocações a respeito de alguma patologia. O caso dessa moça chamou muito sua atenção, porque ela foi internada quatro meses depois da morte da própria filha. Jung foi buscar material a respeito e descobriu a história: a filha havia morrido, ela teve o surto e sua vida era comum, sem nenhum ponto anormal. Jung era intuitivo e resolve aplicar o teste. Ele observou que “casar” tinha um tempo de reação longo, bem como “querida”, “estúpido”, “dinheiro”, “mal”, “obstinado”, “rico” e “anjo”. Ele não conseguiu aplicar o teste inteiro de uma vez porque ela chorava muito. Ele descobriu que ela tinha uma filha de olho azul que era muito querida e morreu – parecia que tinha alguma coisa envolvida aí. Ele percebe que tem isso e pensa que ela tem um prognóstico ruim e que ela teria matado a filha. Como? Ele arrisca e em uma das conversas pergunta o que aconteceu. A mulher então contou que era de uma família de classe média e no seu vilarejo natal havia um pretendente de uma elite aristocrática, por quem era apaixonada. A família dizia para que não pensasse nele, por conta da distância social entre ambos. Ela se casou com outro homem, mais simples, com quem teve dois filhos. Anos depois, surge um rapaz amigo daquela época visitá-los. Numa hora em que o marido sai, o visitante diz que ela fez uma pessoa sofrer muito com o casamento, e revela que o antigo pretendente era apaixonado por ela e o casamento havia deixado ele sofrendo. Mais tarde ela foi dar banho nas crianças e a água estava contaminada por causa de um surto de tifo. Durante o banho, ela permite que os filhos bebam a água contaminada, a filha morre, ela surta e vai ser internada. Conclusão da história: do ponto de vista psicológico (olha como é o inconsciente), não adiantava ficar livre do casamento. Para voltar à condição anterior, ela deveria ficar livre dos filhos. De que forma? Inconscientemente, oferecendo a água que sabia estar contaminada. Não foi estratégico, porque depois ela mesma se condena: em vez de ser presa como assassina, foi presa no hospital psiquiátrico. Quando Jung fala isso para ela, ela surta, fica mal. Durante quatro meses ambos trabalharam a questão, com ela tendo alta e nunca mais sendo internada. Ninguém acreditava nessa reviravolta, porque achavam que ela seria uma paciente até o fim da vida.

“Quem aceita o seu pecado pode viver com ele. Se não aceitar, tem de suportar as inevitáveis consequências” (C. G. Jung, “Fundamentos de psicologia analítica”, p. 71)

Quando ela tomou consciência do aspecto negativo que ela mesma tinha, ela pôde aceitar que fez aquilo, mesmo sem ser proposital, por conta do desejo que tinha.

Em 1906, Jung enviou a Freud sua obra sobre os estudos experimentais, testes e associações de palavras. É o volume 2 das Obras Completas e tem tudo que se relaciona com o teste de associação de palavras. Jung ficou conhecido como um cientista, e muito valorizado e respeitado, a partir desses experimentos. Em 1907 ele escreveu “A psicologia da demência precoce: um ensaio”, que virou o volume 3 das Obras Completas (“Psicogênese das doenças mentais”). Quando escreveu esse livro, teve a famigerada reunião de 12 horas com Freud, e fez uma análise da esquizofrenia a partir dessa questão dos complexos. A esquizofrenia era considerada uma patologia orgânica, ou seja, precisa tomar remédio porque tinha um desvio hormonal. Jung mostrou que havia um aspecto psicológico da condição esquizofrênica.

Em 1908, “O conteúdo da psicose” (que está junto no volume 3). Por conta desses estudos experimentais sobre a questão dos complexos, é convidado, no ano seguinte, para ir apresenta-los na Clark University, nos Estados Unidos. Independentemente disso, Freud foi convidado para apresentar seu texto sobre interpretação de sonhos. Como ambos estão em um relacionamento de amizade e profissional bastante próximo, resolvem ir juntos. A viagem da Europa para os Estados Unidos não era simples – primeiro por terra, depois de navio, demorando um mês. Eles combinaram de, ao longo da viagem, trocarem os sonhos e cada um analisar o sonho do outro. Foi nessa viagem que apareceu um sonho de Freud sobre o qual Jung pede para que ele conte mais sobre sua vida, para poder interpretá-lo melhor, ao que Freud respondeu “jamais”, afirmando que perderia sua autoridade. Se ele prima pela autoridade em detrimento da verdade, significa que ele não possuía a autoridade, pensou Jung.

Nessa troca de sonhos com Freud, Jung tem um sonho em que estava numa casa na qual, no andar superior, havia uma mobília muito bonita. A cada andar que desce, a mobília fica mais antiga. No porão havia pedras e um alçapão. Ele puxa, desce uma escada estreita e encontra restos de uma civilização antiga e dois crânios. Ele contou para Freud, mas soube de antemão que de todos os detalhes ele ficaria preocupado com os crânios. Jung mente deliberadamente, dizendo que são da esposa e da cunhada, pois sabia onde Freud iria chegar. De fato não tinha nada a ver com isso, porque foi a primeira menção do conceito de inconsciente coletivo. Ou seja, é como se houvesse na consciência a atualidade e, cada vez mais profundamente, vai chegando ao homem primitivo.

Por acaso, caiu na mão de Jung o livro “Simbolismo e mitologia dos povos antigos”, de Friederick Creuzer (1810). Esse livro é resultado de uma pesquisa arqueológica. Qual havia sido a primeira opção de faculdade para Jung? A arqueologia, que não pôde fazer porque não tinha recursos financeiros. Quando começou a ler o livro, foi como se estivesse lidando com os loucos do hospital. É aí que ele vai se interessar cada vez mais pela mitologia e vai aprofundar esses estudos. Nessa mesma época, Théodor Fournoy publicou nos arquivos de psicologia os sonhos de uma paciente, que marcam o início de um surto esquizofrênico posterior. Quando Jung leu o caso, encontrou muitas semelhanças entre as imagens dos sonhos da mulher e o que os povos antigos apresentavam como imagens de religiosidade. Ele mergulhou nesse estudo e isso se tornou o livro publicado em 1912, “Metamorfose e símbolos da libido”. É a análise de Ms. Miller e as imagens de seus sonhos. Ele começa o livro dizendo que há dois tipo de pensamentos (baseado em algumas teorias e autores importantes): o racional, dirigido, que utilizamos em uma aula, por exemplo, fazendo analogias, associações, resolvendo problemas; e um tipo de pensamento que não controlamos, que nos acontece, nem nos cansa, que ele chamou de pensamento de fantasia. É nesse livro que ele vai explorar e fazer uma análise mitológica das imagens de Ms. Miller. Em um capítulo chamado “Sacrifício”, ele enfoca na questão do incesto e no conceito de libido – por isso esse livro marcou o rompimento com Freud.

Jung considerou simbólica a teoria do incesto. Para ele, não existe um desejo de penetração na mãe, mas um desejo simbólico de penetração da consciência no inconsciente, porque vamos em busca de nossas raízes para ampliar a consciência. Libido, para Freud, é energia sexual, enquanto para Jung é energia psíquica. A libido é energia vital que se manifesta de várias formas. Uma das formas, muito importante do ponto de vista do ser humano, é a energia sexual, mas não é a mesma coisa. Uma não é sinônimo da outra, mas tem essa manifestação.

Jung trata da importância dos mitos para a psicologia e para a condição psíquica do homem:

“O mito é aquilo a que se refere um dos santos padres:_ quod ubique, quod semper, quod ab omnibus creditum est _[aquilo que é acreditado em toda parte, sempre e por todos], portanto, aquele que pensa viver sem mito ou fora dele, constitui uma exceção. Ele é, na verdade, um erradicado, que não tem contato verdadeiro com o passado, a vida dos ancestrais (que sempre vive em seu seio), nem com a sociedade humana do presente. Não mora numa casa com os outros, não come e não bebe igual aos outros, mas vive uma vida isolada, envolto numa ilusão subjetiva elaborada por seu intelecto, e que lhe parece uma verdade recém-descoberta. Este capricho da razão não abala suas entranhas; ocasionalmente só lhe vira o estômago, porque este considera tais elucubrações mentais como um bocado bastante indigesto. A alma não é de hoje! Sua idade conta muitos milhões de anos. A consciência individual é apenas a florada e a frutificação própria da estação, que se desenvolveu a partir do perene rizoma subterrâneo, e se encontra em melhor harmonia com a verdade quando inclui a existência do rizoma em seus cálculos, pois a trama das raízes é mãe universal”.

Toda vez que Jung fala “alma”, quer dizer “psique”. Por que ele fala do mito desta forma? Porque o mito é a linguagem do inconsciente coletivo. Essa parte do prefácio foi escrita em 1951. O livro saiu em 1912-13, em duas partes, e no final dos anos 1940 ele faz uma revisão, mudando o título para “Símbolos da Transformação” (volume 5 das Obras Completas).

O mito, na verdade, é a linguagem pela qual se expressa o inconsciente coletivo. Por isso que o mito não morre, Por isso que a gente continua com as nossas histórias. Por isso que a gente se encanta com os contos de fadas, com as parábolas, com essa linguagem – ou com esse pensamento – de fantasia. Porque faz parte da nossa estrutura psíquica.

Isso foi o que Freud falou no apêndice do caso Schreber:

“Este breve pós-escrito à minha análise de um paciente paranoide pode servir para demonstrar que Jung tinha excelentes fundamentos para sua asserção de que as forças criadoras de mitos da humanidade não se acham extintas, mas que, até o dia de hoje, originam nas neuroses os mesmos produtos psíquicos que originaram nas mais remotas era passadas (...) e que a mesma é válida para as forças que constroem as religiões” (S. Freud, “Pós-escrito”, “Caso Schreber”)

Freud reconheceu, por um instante, o valor da pesquisa de Jung, mas logo passa por cima e os psicanalistas esquecem dessa frase que o Freud colocou. Ou seja, desse olhar que considerava. A ponto de Jung, quando escreveu “Memórias”, no final dos anos 1950, escrever um capítulo chamado “Freud” em que diz que, na verdade, olhando para trás, Jung foi o único que foi atrás dos dois questionamentos básicos mais importantes que Freud teve: a teoria da sexualidade e as reminiscências arcaicas do comportamento – porque ele vai desenvolver os conceitos de inconsciente coletivo e arquétipos, que Freud foi contra, mas reconhece o fundamento nessa frase. O que Jung fez foi ampliar aquilo que Freud já tinha começado a desenvolver com a psicanálise.

A questão do incesto, que ele vai divergir do Freud, é a seguinte:

“Para mim o incesto, só em casos extremamente raros, constitui uma complicação pessoal. Na maior parte dos casos, representa um conteúdo altamente religioso e é por esse motivo que desempenha um papel decisivo em quase todas as cosmogonias e em inúmeros mitos.” (“Memórias, Sonhos e Reflexões”, p. 149)

Como assim o incesto é algo altamente religioso? É aí que tem a diferença da forma de abordagem do conceito de religião para Jung. Ele vai tomar o termo “religião” de “religio”, que tem duas vertentes: uma é “religare”, termo utilizado pelos padres da Igreja primitiva, no sentido de uma religação com Deus; e o “religere”, que tem a ver com levar em consideração alguma manifestação que o homem entende ser de natureza divina. Jung tira o termo “religio” de Cícero e o usa no sentido de “religere”. O que se observa no nosso desenvolvimento psíquico? Nascemos com um conjunto de potencialidades, que é o inconsciente coletivo. Dentro disso, temos o gérmen daquilo que se desenvolverá como consciência. Para que possamos andar sobre as próprias pernas e nos tornarmos alguém, nos afastamos dessa matriz (sem romper com ela, o que seria uma psicose) para podermos desenvolver cognição, intelecto, autonomia etc. Essa questão do “religere” é justamente essa volta, esse mergulho da consciência no âmbito mais amplo da raiz dessa esfera. Por quê? Qual é o objetivo do desenvolvimento psicológico? Criação e ampliação de consciência. Na verdade, nas “Conferências” vimos isso, que criar consciência, ter consciência de algo é muito importante. Muita gente ignora muitas coisas que acontecem, fazendo de coisa que não está acontecendo nada, e depois a gente vê adoecendo. Aquilo que a gente nega não deixa de existir, continua presente no psiquismo humano.

Lembram daquela frase que os homens podem enterrar os amigos e viver como estranho numa terra estrangeira, mas que deve ser fiel a si mesmo? Justamente essa fidelidade foi o que ele conseguiu romper para escrever o que pensava e conseguir se entregar a algumas experiências que hoje vemos registradas no “Livro Vermelho”. Foi o momento que ele definiu como “confronto com o inconsciente”, capítulo de “Memórias, Sonhos e Reflexões” em que ele fala sobre o período de 1913 a 1917. Neste período ele teve visões, sonhos, achou que estava enlouquecendo e sentia precisar dar conta de todo esse conteúdo que emergia do inconsciente. Por exemplo, quando escreveu “Septem Sermones ad Mortuos”, em linguagem gnóstica. Além de Santo Agostinho, Mestre Eckhart, Schopenhauer, Nietzsche, Kant, ele também estudou os gnósticos e alquimistas. Também ele escreveu “A Função Transcendente” (volume 8 das Obras Completas, “A Natureza da Psique”) em 1916, mas publicado em 1957 – é um texto que surgiu nesse momento de confronto com o inconsciente, quando ele experimentou essas imagens e teve de dar conta do sentido e significado de tudo isso. É onde apareceu o método que desenvolveu para entrar em contato com esses conteúdos, que depois chamou de imaginação ativa.

Imaginação ativa porque você vai se deixar levar por imagens, pela produção de imagens do processo de fantasia, mas não vai perder a consciência – porque senão você está sonhando. Você vai rebaixar o nível de consciência, algo que usamos no consultório para poder acessar conteúdos do inconsciente. Não é hipnose, é imaginação, porque a pessoa não perde a consciência ou a rebaixa a ponto de não lembrar o ocorrido. A censura diminui.

É o momento em que desenha a primeira mandala, quando está no campo de guerra – lembrem que a Primeira Grande Guerra estourou nesse período e ele serviu como médico. Outro registro foi uma palestra em Paris, que virou o livro “Dialética do Eu e do Inconsciente”, em 1928. Dá para ter uma ideia de que a teoria de Jung não surge do nada e que ele possui um estofo muito grande filosófico, teológico, histórico, antropológico, mas também tem suas próprias experiências enquanto pessoa e médico psiquiatra.

Como Jung propôs a estrutura psíquica, da alma? A máxima de Aristóteles vale: “o intelecto só contém aquilo que passou pelos sentidos”. Como entrar em contato com os objetos, as coisas? Pela percepção dos órgãos dos sentidos: tato, visão, audição, paladar, olfato. Eu só posso ter conteúdo no intelecto que tenha passado pelos sentidos. O que ele quer dizer? Eu só entro em contato através da consciência. Tudo que eu entro em contato diretamente é através da consciência. Estou aqui falando com vocês, a minha consciência está o tempo inteiro ligada porque preciso lembrar do que falar, fazer ligações com a teoria, com o que é meu objetivo mostrar para vocês; vocês estão conscientes, ouvindo, fazendo associações com registros próprios da memória, certo?

A consciência é o produto da percepção e orientação no mundo externo. Ela tem origem ectodérmica e estão presentes nela os órgãos dos sentidos. Isso vai dar um gancho para ele desenvolver o que conhecemos como “funções da consciência”. Qual a primeira função da consciência? Exatamente os órgãos dos sentidos – eles me indicam que alguma coisa existe. Não sei o que é, porque eles não dizem o que é, apenas sinalizam (um ruído, um cheiro, uma visão, uma sensação) que eu sei o que é porque tenho algum registro. Ao perceber alguma coisa, essa coisa entra em contato com registros que tenho na memória, passa a fazer comparação ou diferenciação e, a partir disso, eu nomeio essa coisa. Escuto um som, nomeio que é o ar-condicionado, porque tenho um registro que me indica isso. Quem faz isso é a função pensamento, ela que me permite dar nome às coisas. Imediatamente após isso, vou avaliar, julgar se essa coisa que descobri pelos sentidos e nomeei, qual valor ela tem: agradável, desagradável, legal, não legal, bonito, feio. Essa é a função sentimento, aquela que dá o valor. Em seguida, levanto as possibilidades dessa situação. Quem me permite isso é a função intuição. Todas elas são funções da consciência.

Qual é o centro da consciência? É o que ele chama de ego, aquilo que nos dá identidade. É formado pela percepção geral do corpo e existência, mais os registros da memória. Esse centro da consciência, o ego, o Eu, é aquilo que me dá identidade. Então, a criança pequena não fala “eu”. Quando a criança começa a falar, ela repete o que o adulto fala. Se for menino, “ele quer isso”, se for menina, “ela quer”. A criança, que ainda não tem uma consciência desenvolvida, não tem identidade ainda, ela não sabe o eu. Quando a criança começa a falar o eu, começa o desenvolvimento dessa identidade. Ela já sabe quem é ela de fato? Ainda não. A gente vai ter essa noção mais para a adolescência, ela só diferencia a si própria dos outros. Normalmente espera-se que na adolescência a gente tenha o clique: o nome que a gente tem, de onde a gente veio, o endereço que a gente mora, o que a gente pretende, quais os objetivos... É teórico, tá, porque naturalmente hoje a gente não observa mais isso. Antigamente talvez, mas hoje... Dizem que a adolescência vai até os 27 anos...

Essa consciência tem funções ectopsíquicas (sensação, pensamento, sentimento e intuição) e endopsíquicas (memória, conteúdo subjetivo das funções, afetos e emoções, e invasões). Invasões são conteúdos que emergem na consciência vindos do consciente. É uma patologia num caso de esquizofrenia, por exemplo, mas isso pode acontecer com uma pessoa “normal”. Quantas vezes a gente não surta? No trânsito, alguém te fecha, você surta. Claro, você volta logo. A diferença na psicopatologia é que o paciente demora a voltar, ou nem volta. É uma função do próprio psiquismo que não se caracteriza como uma patologia – só o será quando for unilateral, com um ego mais fragilizado, menos estruturado, que não consegue voltar, cair na real e perceber “peraí, o que estou fazendo?”

Os conteúdos da consciência são as funções, os processos volitivos e instintivos (ou seja, a vontade que está na consciência). O instinto também cai na consciência – quando você vai agir, por exemplo, senão você não tem noção do que está acontecendo. Além disso, os sonhos também são conteúdos da consciência. São produto do inconsciente, mas são conteúdos da consciência. Se o sonho não cair na consciência, você não vai se lembrar, que é uma parte daquele pensamento de fantasia que Jung colocou no “Símbolos da Transformação”.

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A sensação me diz que algo existe. O pensamento me diz o que é. O sentimento me diz qual o valor daquilo. A intuição me dá as possibilidades dessa situação.

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Lilian Wurzba

Psicóloga e supervisora clínica. É professora dos cursos de especialização em Psicologia Junguiana, Psicossomática, Dependências, Abusos e Compulsões (DAC) e Arteterapia e Expressões Criativas do Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa (IJEP), em São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília. Graduada em Psicologia pela Universidade Paulista, mestre e doutora em Religião pela PUC-SP. É Pesquisadora do Nemes (PUCSP), professora da Casa do Saber e do MIS. Autora do livro: "Natureza Irreal ou Fantástica Realidade? Reflexões sobre a melancolia religiosa e suas expressões simbólicas na obra de Hieronymus Bosch"

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Jung: Vida e Obra
Jung e a Alquimia
Os Tipos Psicológicos de Jung
Uma Introdução Guiada e Descomplicada ao Pensamento de Jung
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