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O psicólogo Carl Gustav Jung em seu escritório
Psicanálise - 18 de out

Jung: Vida e Obra | Parte 1

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Por Lilian Wurzba

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Aviso: este material é uma transcrição do curso “Jung: Vida e Obra”, realizado pela Casa do Saber e pela professora Lilian Wurzba em 2021. Por se tratar de uma transcrição, as frases não seguem necessariamente uma ordem ou linha de raciocínio semelhante às de um texto escrito.

Formação e primeiros pensamentos

Vamos falar um pouquinho sobre Carl Gustav Jung, vamos introduzir o pensamento deste psiquiatra e que se autodenominava psicólogo, mas que, na verdade, é um grande pensador. Então nós vamos fazer essa incursão, mesmo que breve, nesses três encontros que a gente vai ter. Então a minha ideia é passar, dar um panorama geral hoje, contextualizar um pouquinho como que o Jung começou a desenvolver a sua teoria, seu pensamento, como ele mesmo disse numa das cartas que escreveu, são várias, mas em uma delas ele diz que “para que possamos entender o mundo de hoje, não podemos desprezar o método histórico”. Então o método histórico vale para tudo, ou seja, o que somos hoje é resultado de um processo histórico. O que ele produziu também é resultado de um processo histórico, então suas bases estão no seu próprio desenvolvimento. Vou apresentar rapidamente essa contextualização do mundo, um pouquinho do que o Jung viveu, começando hoje, o tema geral da aula são os primeiros pensamentos. Quero chegar até os primeiros pensamentos para a gente poder, na aula seguinte, dar um panorama geral sobre a teoria propriamente dita e, no último encontro, contextualizar com o mundo de hoje, fazendo uma relação e justamente ampliando essa ideia do pensamento para além da clínica. Como psiquiatra e psicólogo, claro que ele se deteve, num primeiro momento, na clínica, mas a preocupação maior dele se estende para muito além da clínica. Ele era alguém preocupado com a condição humana. A base, talvez até que norteou todo o pensamento dele, tenha sido uma preocupação com o sofrimento humano – esse é um dos veios que vai conduzir toda a nossa fala aqui.

Jung foi ou ficou conhecido justamente pelos conceitos que acabou desenvolvendo. Conceito de complexo, de arquétipo, de inconsciente coletivo, da tipologia, tipo pensamento, extrovertido, introvertido. Se fala muito desses conceitos, até de uma forma um pouco mais banalizada, talvez sem o entendimento. Por exemplo, a bendita palavra “individuação” se fala como se fosse alguma coisa do tipo “bom, está um Sol muito gostoso lá fora, eu vou para a piscina, vou pegar uma cervejinha gelada e vou individuar”. E não é bem assim que as coisas acontecem. É uma palavra que tem uma significação muito mais ampla do que a gente possa imaginar. Para chegar nesse conceito, nesse termo único, foi desenvolvida toda uma teoria, toda uma prática – não só uma prática clínica, mas a experiência de vida também – então está muito além disso.

Esta questão da incompreensão de Jung, na época em que desenvolveu suas ideias, Jung foi muito mal compreendido e criticado. Não só no âmbito médico – ele era psiquiatra e acusado de antipsiquiatria -, mas no campo teológico, religioso. Foi uma das pessoas dentro da área da psicologia que abordou muito essa questão religiosa, sendo criticado ora porque achavam que ele era um herege, ora porque achavam que ele queria fundar uma nova seita. É um pouco paradoxal, inclusive essas colocações. Ele foi incompreendido na época por outros motivos também, inclusive pela questão da dissidência, pelo rompimento com a psicanálise freudiana, com o próprio Freud. Ficou muito tempo afastado do campo psi, justamente por conta dessa colocação, desse posicionamento assumido, por conta das divergências com a psicanálise. Algumas divergências, mas essenciais. Ele ficou muito mal compreendido e hoje também a gente observa que quando se fala, por exemplo, na minha experiência: vou a algum lugar e perguntam o que faço e digo que sou psicóloga junguiana e respondem “ah, você vê duende no jardim?” É uma forma também de incompreensão, ou seja, aquilo que ele falou de uma forma bastante consistente, com uma fundamentação, um escopo teórico muito grande, uma erudição imensa, fica reduzido a uma brincadeira, talvez, pela própria incompreensão.

Como eu disse, Jung ultrapassa os limites do consultório. Seu pensamento está muito além da clínica, porque sua preocupação era com o homem moderno, a condição do homem. Por que o homem moderno, principalmente, sofre? Essa preocupação com a situação espiritual do homem moderno, tem um momento em que ele chega a dizer que vivemos o que ele denominou de “neurose do nosso tempo”, que seria um afastamento da questão da espiritualidade. Só que espiritualidade para o Jung não é frequentar um centro, ou um templo, ou um terreiro, não é isso, está além disso, como vamos compreender. E isso leva, inclusive, a uma questão dessa incerteza do conhecimento que a gente vai ver que a nossa ânsia pela busca de sentido sempre, essa busca constante, frequente, ela tem uma razão psíquica. Não é moda, não é nada disso. Claro que vai ser formatado dependendo do contexto histórico, da situação cultural daquele grupo de pessoas, mas existe uma propensão, uma tendência a essa busca.

É muito interessante, porque essa questão da incerteza do conhecimento o Jung vai dizer, no final da vida, em agosto de 1960, numa das cartas:

Quanto mais velho fico, mais me impressiona a fragilidade e incerteza de nosso conhecimento e tanto mais procuro refúgio na simplicidade da experiência imediata, para não perder o contato com as coisas essenciais, isto é, as dominantes que governam a existência humana (...) É bem possível que estejamos olhando o mundo do lado errado e que poderíamos encontrar a resposta certa mudando nosso ponto de vista e olhando o mundo pelo lado correto, isto é, não pelo lado de fora, mas de dentro.

Essa questão do “fora” e do “dentro” nós vamos entender melhor qual é o significado quando a gente adentrar os primeiros pensamentos. Só para adiantar, uma das coisas que é tida, tanto pelo Jung como por outros pensadores como a fonte do sofrimento humano, é essa questão de sermos seres duais. Vivemos em um mundo material e um mundo psíquico ou espiritual. O fora e o dentro. Enfim, a gente está sempre nesse conflito. Se a gente ficar para o lado de fora, o que isso significa? Significa que nosso comportamento será norteado pelo nosso ambiente – então vamos agir de acordo com a expectativa do ambiente, ou aquilo que a gente acha que seja a expectativa do ambiente. Então não vamos desenvolver aquilo que trazemos como nossa essência, vamos desenvolver aquilo que o outro espera da gente. Se nós ficarmos só do lado de dentro, a gente se isola do mundo externo, então vivemos fora da realidade. Navegar entre esses dois mundos é que promove o nosso desenvolvimento. E é a coisa mais difícil que tem, a gente conseguir satisfazer (ou pelo menos se adequar a) essas duas esferas.

O nosso objetivo aqui é justamente não só trazer esse conhecimento para atualizar um pensador que talvez seja mal-compreendido, como a gente já falou, mas principalmente para ver qual a maneira ou forma de contribuição que esse pensamento junguiano pode trazer para a nossa realidade hoje. Ele nasceu em 1875 e morreu em 1961, portanto viveu grande parte da vida dentro do século 20, desenvolveu-se e também desenvolveu sua teoria e pensamento dentro do século 20. A sua juventude se deu no século 19, ele tem uma influência grande desse século. Então ele é bem recente e pode trazer uma compreensão muito melhor, talvez, uma ampliação nesse conhecimento que a gente está tentando adquirir da nossa realidade hoje. Acho que esse é o nosso objetivo. E principalmente nesse mundo que vivemos, que não é diferente do mundo do Jung, onde o que é valorizado é o racionalismo, o cientificismo, a técnica, a tecnologia; onde a gente valoriza mais e se utiliza mais de alguns recursos e instrumentos como o programa, o controle, a maximização do desempenho e da eficácia, tudo que a gente vai fazer é assim – quanto é eficaz, o que tem de produto, quanto é utilitário, o que isso vai trazer de benefício, é sempre assim. Os nossos comportamentos e atitudes vão sendo exigidos. Isso em detrimento de muitos aspectos que, como não cabem nessa situação, acabam sendo negligenciados, promovendo que tipo de situação? Doença.

Nós vivemos em um momento em que, por exemplo, a depressão é algo assustador. Não só a depressão propriamente dita – porque estou falando de depressão mesmo, a doença, a patologia, a psicopatologia depressão. Diferente de uma certa tristeza que alguém vai no médico e fala que está triste, e o médico passa uma fluoxetina básica, porque precisa ficar feliz, não pode ficar triste de jeito nenhum. Como se esse sentimento, essa emoção “tristeza”, esse afeto não fizesse parte de nossa condição, a gente precisa eliminar. Então quando a gente elimina, o que acontece? Some, é tipo assim, você virou a esquina – o prédio deixou de existir? Não, você não vê mais, mas ele está lá. É a mesma coisa com os afetos que a gente negligencia. Aqueles que não são experimentados ficam em algum lugar dentro do nosso psiquismo e vão se manifestar de alguma forma. Uma das formas é a própria patologia, a doença, e uma delas que tem um número cada vez mais elevado e assustador é a própria depressão. Segundo a OMS, em 2020 (essa foi uma previsão feita no início dos anos 2000), a depressão mataria mais do que o câncer. É algo muito preocupante. E por que isso acontece?

A gente não pode falar numa determinação, claro, porque quando estamos na esfera do psíquico existem vários fatores que contribuem para um resultado, a inter-relação de alguns fatores que contribuem para um resultado. Então a gente não pode falar numa determinação, mas de uma contribuição desses fatores psíquicos nesse adoecimento que observamos. Uma das ciências mais modernas, que é a psicossomática, que vocês devem, se não conhecer, ter ouvido falar, parte de qual princípio? Exatamente deste, de que afetos que não são vivenciados (não é bater quanto se está com raiva, por exemplo, mas enfrentar o afeto, qual seu sentido e significado, não exercitá-lo e praticá-lo; é preciso olhar, não negá-lo), não integrados, não observados, percebidos como algo que têm um sentido, vão se expressar na forma de doença. Se não dá para expressar de outro jeito, por meio de um sonho, comportamento, de uma ideia, uma pintura, qualquer tipo de expressão, vai se expressar no corpo.

Só a título de exemplo, tive um paciente a algum tempo atrás, uma pessoa extremamente racional, alto executivo que trabalhava sem parar, chegou no consultório encaminhado pelo médico. O que também já me chamou bastante atenção, porque foi um ortopedista. O cirurgião ortopedista é alguém que serra osso, uma pessoa concreta, então atribuir um valor ao psi já é alguma coisa bastante inovadora e legal. Ele chegou no consultório e disse que estava ali porque o médico tinha pedido. Perguntei o que havia acontecido e ele disse que “caiu do nada no escritório”. Levou um escorregão, caiu do nada e ficou seis meses inativo, porque quebrou a cabeça do fêmur junto com o quadril, fez acho que três cirurgias para se recuperar e ficou seis meses parado. Alguém que não parava, “pararam” ele. Então “do nada”, depois de um processo de psicoterapia, lá na frente ele falou assim para mim: “Puxa, no primeiro dia você se lembra que eu falei que caí do nada? Agora a gente já sabe que não foi bem assim”. A gente foi vendo ao longo do processo o que teria acontecido que estaria representando, que símbolo era esse desse tombo. Aparentemente sem significado, uma bobagem, mas não, tem sim. Tem muitas coisas que acontecem com a gente, sempre tem um porquê e um “para quê”, uma causa e uma finalidade. É isso que Jung vai dizer.

Para poder então localizá-lo, contextualizar historicamente, elenquei alguns fatores e fatos que considero importantes para a gente entender como que o pensamento dele se desenvolveu. Que interesses ele foi tendo ao longo da vida para que pudesse desenvolver esse tipo de pensamento, de teoria? Ele nasceu em 1875, em julho, em Kesswill, num cantão da Suíça, filho de um pastor da Igreja Reformada e uma mãe dona de casa com outros sete irmãos pastores. Ela não era ligada a esse lado religioso, mais do lado espiritualista. Vamos lembrar que na segunda metade do século 19 nós temos um desenvolvimento do Espiritismo de mesa, essas coisas começam a aparecer. Se fôssemos classificá-la dentro de uma esfera, ela estaria mais voltada para o espiritismo. O Jung chegou a dizer em suas memórias que a mãe era misteriosa, então durante o dia era uma pessoa e de noite outra, por conta dessas falas misteriosas que ela tinha, que deixava sempre alguma coisa no ar. Temos um pai que era um pastor, doutor em filologia, com uma tese de doutorado sobre uma versão árabe do Cântico dos Cânticos – então não era alguém que não tivesse um conhecimento teológico muito bem fundamentado. Existem algumas indicações que Jung dá de alguns autores que ele também toma, que influenciam o seu próprio pensamento, fazem parte dessa erudição, que eram livros da biblioteca do pai. A biblioteca do pai era razoavelmente substanciosa, vamos dizer assim. Como Mestre Eckhart, por exemplo, que é um religioso importantíssimo do século 13, alemão que foi condenado como herege e com um pensamento que um pouco mais profundo para além do cristianismo vigente da época – com algum veio gnóstico de acordo com alguns comentadores. Jung estudou o gnosticismo depois e tinha uma família em que o aspecto religioso era muito presente, mas com um quê de mistério.

Existe também a lenda, nas palavras do Jung, “irritante” de que ele seria então parente de Goethe. A mãe que apresenta ele diz que quando ele era pequeno, adolescente, ela oferece a ele a leitura do Fausto e aí surgiu essa história irritante de que Goethe seria um filho bastardo de seu avô. A gente observa esse clima da casa, imaginem que tipo de conversas teria ali. Foi filho único durante muito tempo. Tinha 9 anos quando a irmã nasceu. Viveu neste ambiente onde os tios e pai se reuniam para discussão de teologia e religião, portanto sempre esteve ligado nisso. Foi alguém diferenciado até pela própria situação familiar.

Um ano depois do nascimento dele a família se mudou para Laufen e, nessa ocasião, durante essa parte da infância, a mãe tinha o costume de fazer uma certa oração alemã para niná-lo. A oração dizia isso:

Estende tuas duas asas, ó Jesus, minha alegria, e protege teu pintinho; Se Satã quiser devorá-lo Faz cantar os teus anjinhos; Que esta criança fique ilesa.

Ele tem esta oração presente. Por volta dos 4 anos ele tem um sonho, que relata com bastantes detalhes em suas memórias. No sonho ele entrou em um lugar, desce em um lugar de Laufen em que há um presbitério e uma parte no subsolo. Ele estava nesse lugar, desce essa parte e entra em um lugar com uma cortina verde de brocado e, no fundo, tem alguma coisa em um trono cheio de dourado, uma coisa muito grande recoberta de carne de gente, mas sem cabeça. Ele olha para aquilo e não há cabeça, mas um olho, simplesmente. Nesse momento ele fica angustiado por conta dessa visão e a voz da mãe aparece dizendo “Sim, olhe-o bem, isto é o devorador de homens!”

Isso acompanha durante algum tempo, depois, é claro, que não nessas palavras, quando ele vai reproduzir já como adulto, mas acompanha algum tempo porque se a ênfase ficasse “isto é o devorador de homens”, tudo resolvido: era aquela coisa esquisita, de carne humana, com um olho em cima, que é o devorador de homens relacionado com essa oração, que fala do mal, Satã que vem devorar etc. Se a ênfase ficasse na frase “isto é o devorador de homens”, aí estaria o grande problema e que trouxe a ele uma grande dúvida, porque isso seria um representante de Jesus. Por quê? Porque eles moravam numa região perto do Reno, onde as cataratas eram um local em que morria muita gente. Quando aconteciam os enterros, diziam às crianças que Jesus havia chamado aquelas pessoas. Na cabeça da criança ficava a imagem de que Jesus era aquele que leva a pessoa para o fundo da terra também. Como ele seria o ser que protege a criança? Por isso a dúvida da palavra que seria a ênfase da frase.

Outra experiência foi que em um dia, brincando em frente à casa, veio descendo alguém na rua com uma roupa preta como se fosse um vestido de mulher, com um chapéu também preto. Quando a figura vem se aproximando ele acha a figura sinistra e lembra quem era – um jesuíta. Ele tinha ouvido os tios e o pai discutirem sobre os jesuítas e o tom da conversa tinha ficado para ele como uma coisa ameaçadora. Então o jesuíta era alguém ameaçador, perigoso. Veio descendo aquela figura, ele vai em disparada para casa e fica com essas imagens. Associa tudo nesse sonho. Jesus, jesuíta – isso ficou como uma figura meio duvidosa, entre alguém legal ou que poderia devorar os homens. Muito para frente Jung vai descobrir que este ser com carne de gente, com o olho em cima, seria um falo. Muito lá na frente quando vai estudar rituais primitivos, essa figura seria um falo ritualístico.

Inclusive tem um capítulo de suas memórias que se chama “Freud”, em que fala de Freud de maneira bastante respeitosa. Ele divergiu de Freud em alguns aspectos teóricos, mas nunca o odiou. Isso que fica esquisito, porque as pessoas que se autodenominam junguianas não querem nem saber da psicanálise de Freud. Jung não foi assim. Ele levou em consideração, tinha uma admiração muito grande, inclusive do lugar que Freud teve na história do desenvolvimento da própria psicologia, da própria área psi. Foi o pioneiro que Jung reconheceu. Nesse capítulo ele fala de suas divergências e, no final, diz que na verdade o que Freud tinha como interesse (a questão da teoria da sexualidade) tinha muito mais a ver com uma questão mesmo sexual do ponto de vista simbólico, do que do ponto de vista literal. Como ele faz essa associação? Justamente com essa ideia do falo ritualístico, que vem a partir do sonho.

Então vocês já perceberam que, do ponto de vista religioso, Jung já tem uma dúvida. Eles mudam em 1879, então aos 4 anos, para perto da Basiléia, e em 1881 ele é levado pelos pais a conhecer uma igreja católica. Ele está ansioso para conhecer aquela igreja, porque até então só conhecia a reformada. Na hora em que vai entrar na igreja, sabe aquele objeto de limpar o pé, de ferro, para tirar barro? Está bem na porta e ele cai, batendo a cabeça. Ele grita, sangrando, e associou posteriormente a igreja católica a algo horroroso. Ele nunca mais entrou numa igreja católica durante anos. Além de os jesuítas serem perigosos, a igreja católica era responsável pelo tombo que ele levou, pela vergonha que passou.

Antes de ele começar a ler, tinha um interesse muito grande pelo aspecto religioso, principalmente pelas religiões orientais de uma forma geral. O livro que a mãe lia frequentemente era um livro para crianças contando das religiões do mundo, chamado _Imagens do Universo _(Orbis Pictus), de Johann Amos Comenius, de final do século 16. Frequentemente ele pedia para que a mãe lesse principalmente aquilo que se relacionava às religiões “exóticas”, orientais. Não era um livro teórico para adultos, mas para crianças, cheio de figuras, mas veja o interesse já presente deste conhecimento.

Ele vai para a escola e tem um momento em que ele percebe – ele era sozinho, filho único até os 9 anos. Ele sempre gostou de estudar, de ler, de frequentar a escola. Ele tinha as brincadeiras com os amigos em que percebe como um momento no qual se aliena de si mesmo. Ele era do campo e gostava muito da natureza, a ponto de um daqueles corpos que apareciam mortos vindos das cataratas foi trazido por seu pai, que o trancou em um quarto e proibiu Jung de entrar. O que vocês acham que aconteceu? É óbvio que ele foi ver. Chamou a atenção não de uma forma sinistra, mas de curiosidade. Ele queria saber, entender o que era aquilo, como acontecia, como alguém está duro, gelado? É um corpo, por que não está de pé? Qual é a diferença? Neste sentido que ele tinha muita curiosidade. Então a natureza tinha um sabor muito especial para ele por conta dessa curiosidade que vivia. Quando ele brincava com os amigos, era outra pessoa, porque em grupo. Quando estava sozinho, ficava na introspecção, buscando conhecimentos mais profundos, a ponto de ter o que a gente chama de “enigma da pedra”, que era uma pedra que tinha no jardim da casa e que ele sentava sobre ela e, vez por outra, vinha um pensamento de “sou eu que estou sentado na pedra? A pedra sou eu, ou eu sou a pedra?” Qual a diferença? Quando ele estava com os colegas esse tipo de pensamento não acontecia. É só para mostrar para vocês esse jogo de fora e dentro que começa lá atrás e dá sequência ao longo da vida.

Durante esse período da escola, Jung teve um estojo de madeira que tinha uma régua também de madeira. Ele pega e esculpe um homenzinho, o veste com fraque, cartola e sapatos lustrosos, e o coloca em uma caixa, com um rolo de papel em que escreve num código que, mais tarde, não conseguiria lembrar o significado. Junto ele coloca uma pedra, um seixo do rio, caprichosamente pintada – foi seu primeiro segredo. Ele colocou essa caixa no sótão, um lugar proibido pelo perigo de a madeira cair e ele se machucar. Todas as vezes em que ele estava entristecido, amuado, ou que tinha algum problema ou desconforto, Jung ia lá e conversava com o homenzinho. Quando chegou aos 35 anos de idade, ele estava fazendo uma pesquisa para um de seus livros sobre símbolos e rituais primitivos, e se depara com um artigo a respeito das pedras da alma na França. Além disso, também havia o coringa dos australianos primitivos. O que significava isso? Exatamente a representação da alma mesmo, e esse homenzinho poderia ser um representante de um telésforo – aquele que estava ao lado de Asclépio, o pai da medicina, e que lia para ele um rolo de pergaminho. Jung nunca leu sobre isso, porque na biblioteca do pai não havia livros sobre mitologia, portanto ele não tinha acesso a esse tipo de informação para ter registrado e, quando criança, ter reproduzido. De onde surgiu essa ideia? Inclusive porque era uma ideia de conforto para quando tinha problemas. Isso durou um período da infância dele e depois ficou esquecido, perdido entre outros interesses até ser retomado na vida adulta. Já era, no entanto, algo que chamava a atenção, porque ele teve um comportamento que não foi aprendido, ensinado, observado – um comportamento que aconteceu, simplesmente, sem saber de onde veio.

Aos 35 anos Jung está escrevendo Metamorfoses e Símbolos da Libido, obra que sai em 1912 e que marca o rompimento com Freud ao introduzir duas divergências teóricas principais quanto à questão da energia psíquica. Ou seja, quanto ao termo “libido”, que para Freud era energia sexual e, para Jung, posteriormente elaborado melhor, algo chamado de energia vital. A principal diferença no termo libido entre a psicanálise e a teoria junguiana é com relação ao tipo de energia que isso representa – para a psicanálise, base freudiana, energia sexual; para Jung, energia vital, energia psíquica, mais ampla, sendo que a energia sexual é uma das manifestações da energia psíquica, mas não a única. Tem a divergência quanto ao conceito de libido e também em relação ao conceito de incesto. Ele vai trabalhar no nível simbólico. Em 1945 ele começou a trocar cartas com um padre de Oxford chamado Victor White, nas quais ele acaba confessando que, quando escreveu o livro, estava preocupado em mostrar aos seus colegas, médicos psiquiatras, a importância do simbolismo religioso. Ao ler Metamorfoses e Símbolos da Libido (Jung trocou o título nos anos 1950 para Símbolos da Transformação) você não vê isso de forma evidente. É possível observar de forma clara, objetiva, as considerações, a abordagem do tema religião a partir do final dos anos 1930 e início dos anos 1940. Antes disso ele ainda fala de maneira indireta, mas o tema religião está presente o tempo inteiro:

“Com o retorno desta lembrança [35 anos, Metamorfose] fui, pela primeira vez, levado à ideia de que existem elementos arcaicos na alma, que não penetraram na alma individual a partir de uma tradição qualquer”. A lembrança do homenzinho, dos rituais, do falo do sonho – isso tudo veio à cabeça dele quando começou a fazer as pesquisas para a escrita do livro.

Jung tinha um veio artístico. Ele pintava, chegando a fazer um curso na França com Pierre Janet e era um ávido frequentador de museus. Hoje podemos ver algumas de suas pinturas na obra publicada em 2010, O Livro Vermelho. Em 1920, Jung foi para Londres para um evento. Ele pegou um galho de madeira e esculpiu duas figuras e as guardou. Quando ele volta para Zurique, pediu para que uma daquelas figuras fosse feita em pedra e colocada em seu jardim. Ele a chama de Atmavictu, que significava, para ele, “o sopro de vida”, o impulso criador, que leva à criação. Tudo isso lembra a questão do homenzinho do estojo, o telésforo, o falo do sonho.

Em 1884 nasceu sua irmã, Gertrud, que falece em 1935. A experiência do nascimento da irmã não foi tão agradável. A mãe, de repente, sumiu da casa. De repente, o pai chegou, segurou sua mão e anuncia a ele que sua irmã havia chegado. Segundo suas próprias palavras, ele olha para aquela criatura que parecia um rato sem saber de onde veio. Depois o relacionamento com a irmã se tornou bom, mas um tanto distante pela diferença de idade e de interesses.

Segundo consta em suas memórias e em alguns documentários (como Questão do Coração, de 1985) com entrevistas com pessoas que conviveram com ele, Jung era meio briguento. Em 1887, aos 12 anos, Jung estava voltando da escola e levou um soco. Caiu, bateu a cabeça e ficou meio zonzo, passando por ele um pensamento – “agora você não precisa mais ir à escola”. Para ele, foi sensacional, já que passou a ter problemas com a nova escola depois da mudança, seja pelas dificuldades com matemática, educação física e diferenças de comportamento com os colegas. Nessa história de ficar meio zonzo, ele desmaiou. Foi para casa e desmaiou novamente. Por um período de alguns meses, Jung deixou de ir à escola e passou a fazer apenas o que gostava – ler na biblioteca do pai e brincar no jardim. Um dia, um amigo do pai foi visitá-lo e ele escuta o amigo perguntar sobre ele, ao que o pai teria respondido que estava muito preocupado, porque ele já estava velho e não sabia o que seria de Jung se ele não fosse ninguém da vida, por não estudar ou se formar. Isso caiu como um raio na cabeça de Jung. Imediatamente ele volta para a biblioteca e começa a estudar gramática, desmaiando. Esse evento se repete algumas vezes. Mais tarde ele conseguiu perceber que isso se tratava de uma neurose:

Perturbadíssimo, tomei consciência de que, na realidade, havia em mim duas pessoas diferentes; uma delas era o menino de colégio que não compreendia matemática e que se caracterizava pela insegurança; o outro, era um homem importante, de grande autoridade, com quem não se podia brincar – mais poderoso e influente do que aquele industrial. Era velho, que vivia no século 18, usava sapatos de fivela, peruca branca, tinha como meio de transporte uma caleça [...] (Memórias, Sonhos e Reflexões)

Este é o grande momento em que ele toma consciência. Lembram que na escola ele se sentia alienado de si? Neste momento em que ele percebe as duas “personalidades”, foi convidado para ir à casa de um dos colegas, onde havia um lago e um barco. O pai do amigo fez orientações e proibições, desrespeitadas por eles. Após a bronca, Jung compreendeu a autoridade da pessoa mais velha, frente a ele, mais simples, aluno de colégio. Por outro lado, ele teve a sensação de ser alguém muito mais velho e elegante, superior ao pai do amigo, rústico. Isso acompanhou Jung, sendo uma base do que posteriormente ele conseguiu compreender do ponto de vista da estrutura psíquica. Aquilo que somos na consciência hoje, na atualidade, e aquilo que trazemos como uma potencialidade ao desenvolvimento, que vai ser exatamente a matriz do conceito de inconsciente coletivo. Percebam que já está presente essa ideia nesta vivência.

Na mesma época, ao voltar da escola em um dia ensolarado, pensa em como Deus e sua criação são maravilhosos. De repente ele é invadido por um pensamento ruim, algo que o incomoda durante algum tempo. Ele não poderia pensar algo ruim, mas, ao mesmo tempo, o pensamento ruim continua presente. O que estaria motivando isso? Será que seriam pai e mãe? Os avós? Nesse questionamento ele chega até os primeiros pais, Adão e Eva. Eles pecaram também. Quem fez eles pecarem? A serpente. Quem criou a serpente? Deus. Então qual seria esse pensamento que está vindo de Deus? Ele para de resistir e o pensamento é que Deus está sentado em seu trono maravilhoso, acima da catedral, e de repente caem seus excrementos, destruindo a construção. Ele sente um alívio enorme, porque experimentou a graça divina:

Quando põe à prova a coragem do homem, Deus não se prende a tradições, por mais sagradas que sejam. Em sua onipotência, cuida de que nada realmente mau resulte dessas provações. Quando se cumpre a vontade de Deus, não há dúvidas de que se segue o bom caminho [...] Aprendera que estava entregue a Deus e que o importante era cumprir sua vontade, sem o que seria uma presa da loucura – assim começou minha verdadeira responsabilidade. (Memórias, Sonhos e Reflexões)

Ele ouvia muito as discussões do tio e do pai e pensou que eles não sabiam o que significava esse Deus vivo. Essa experiência teria mostrado a ele, e esse seria o segundo segredo de Jung. Ele guardou para si, então, o homenzinho do sótão e esse grande segredo. Vocês entenderam qual a magnitude desse pensamento? O pensamento é ruim? Claro, Deus soltando excrementos e destruindo uma catedral é algo horroroso, mas não é isso. É que você não vai seguir aquilo que está escrito, como eles, pai e tios seguiam – fé cega naquilo que está escrito, sem ter o conhecimento no sentido de experiência. O que ele chama de “graça” é justamente isso, ele fez a vontade de Deus, ou seja, na cabeça dele, seguiu aquilo que estava sendo imposto. Só que essa vontade de Deus, esse Deus metafísico, a partir daí vai começar a pesquisar qual a definição de Deus.

Na sequência dessa percepção da graça divina, a partir daí ele começa a pesquisa sobre o que significa Deus, aquela questão do sofrimento humano, da morte. O sofrimento não é só o sofrimento humano, porque quando ele é criança, no campo, ele sentia a morte dos bichos também, das folhas e flores das árvores. Ele observou tudo isso. Por que isso acontecia? Há coisas maravilhosas, muito boas, mas também há coisas muito ruins. Essa percepção existe sem que ele saiba ou compreenda o significado dela.

Ele chama essa sua outra “personalidade” de Outro: “Este diálogo com o ‘Outro’ constituiu minha mais profunda vivência: por um lado, luta sangrenta e, por outro, supremo arrebatamento”. Como ele chega a isso? Quando ele começa a pesquisar quem é Deus, ele vai à biblioteca do pai e encontra livros religiosos. A primeira coisa que ele acha é A Dogmática Cristã, de Biedermann (1869). Vai no verbete de Deus e lê que é o criador, o sumo bem, que faz tudo pelo homem e que pune os pecadores, mais ou menos assim. Ou seja, não acrescentou nada além do que ele já tinha ouvido falar e não o convenceu.

A mãe apresentou o Fausto, de Goethe. É nesse momento em que ela vê a necessidade de ele começar a ler. Quando ele lê a obra, fica encantado, e diz ter achado alguém que finalmente leva a sério o diabo e o mal. No entanto, ele fica bravo com Goethe, porque Mefistófeles era muito inteligente para ter o fim que teve. Ao mesmo tempo, Fausto abre um caminho para ele, sendo uma espécie de filósofo dentro da própria narrativa. Além da teologia, dos livros da biblioteca do pai, Jung foi recorrer à filosofia. Em Dicionário Geral das Ciências Filosóficas, de Krug, Jung investiga as definições de Deus e do diabo. Sobre Deus, as respostas da filosofia discorriam sobre ser uma ideia criada pelo homem. Como Deus pode ser reduzido a uma ideia? Ao mesmo tempo, a teologia é uma coisa metafísica, longe do homem. Como isso se dá?

Jung chega ao pensamento de Schopenhauer, um filósofo que tratou do sofrimento humano, da vontade cega etc. No entanto, ele não concorda com as respostas de Schopenhauer. A racionalidade humana funcionaria como um espelho onde a vontade cega poderia se ver para se corrigir. Apesar disso, a partir de Schopenhauer ele chega em Kant e nas obras Crítica da Razão Pura e Crítica da Razão Prática. Kant é o pai da epistemologia e Jung se apoiaria nisso, principalmente por conta da teoria do conhecimento. Nós temos uma limitação, não temos acesso aos objetos em si, não conhecemos o objeto em si. A teoria do conhecimento fala de uma limitação do nosso conhecimento. De fato, eu não conheço os objeto senão a partir das referências que tenho a respeito dele. ^Pessoas têm referências diferentes que podem provocar desentendimentos a respeito das coisas do mundo. Tudo que nós experienciamos é visto, em primeiro lugar, a partir do psiquismo. São imagens que vivenciamos. Até a dor física – isso ele fala no Volume 10 de suas obras completas, Civilização e Transição -: até a for física que experimentamos é psíquica em primeiro lugar. Se eu pegasse uma agulha e colocasse com a mesma intensidade no exato mesmo lugar em todos nesta sala, cada pessoa experimentaria a dor de forma diferente. Por que os xamãs pisam em brasas e não queimam os pés? Por que um faquir deita em uma cama de pregos e não se fura? Por que uma dor de estômago é experimentada diferente por cada um de nós? Porque cada um de nós tem diferentes referenciais – não apenas referencial orgânico, mas a percepção psíquica, que é inconsciente. Não é algo que se tem clareza: “é algo que vou experimentar de tal jeito”, mas que simplesmente se experimenta.

Kant então foi um bálsamo para Jung, na medida em que mostrou a questão desse outro lado negativo, do Mefisto, do mal, do sofrimento, em oposição ao lado do cristianismo, do sumo bem, Deus todo poderoso, onisciente, onipotente e toda essa coisa.

Ele entrou no curso de medicina na Universidade de Basiléia, em 1895 até 1900. Ele queria fazer arqueologia, mas não poderia por não ter recursos para isso, uma vez que teria de ir para outra cidade. Jung considerou os interesses pelas ciências naturais e pelas humanidades, optando pela medicina – sem lembrar que ele teve um avô de mesmo nome que foi médico. Foi um aluno aplicado, com bom desempenho, chegando ao último ano e tendo de optar pela área de especialização. Ao estudar para os exames finais, tem contato com um manual de psiquiatria de Krafft-Ebing e encontra ali a possibilidade de suas duas personalidades: do lugar em que o encontro da natureza e do espírito se torna realidade. Só na psiquiatria ele poderia fazer confluir as duas, porque o resto da medicina seria muito mais materialista.

Em dezembro de 1900 ele assumiu o cargo de assistente no Hospital Burghölzli, em Zurique, escrevendo Sobre a Psicologia dos Fenômenos Ocultos, em 1902 – o primeiro volume de suas obras completas, chamado Estudos Psiquiátricos. Ali é possível encontrar uma análise que ele faz de uma vidente, uma médium do espiritismo de mesa. Ele e alguns amigos frequentaram e assistiram as sessões na casa desta médium e ele acabou falando sobre isso (não do ponto de vista teológico, espiritualista, mas psíquico). É o primeiro passo que ele dá. Depois viríamos a saber que ela era prima dele.

Dei uma geral para vocês do contexto de desenvolvimento dele para chegarmos aos primeiros pensamentos, que aparecem em cinco conferências que ele fez durante o período de universidade, enquanto aspirante a médico. Nessa época ele participou de um clube chamado Clube Zofingia – uma agremiação estudantil que reuniu várias universidades e cursos. Estudantes que se reuniam para discutirem ciência, política, para beber, fazerem excursões, coisas da própria juventude estudantil. A partir do segundo ano Jung ingressa no Clube e o pai o acompanha, tendo participado também em sua época de estudante. Jung tem então uma experiência com o pai que gera uma percepção diferente – o pai era alguém amargo, que ficava discutindo só sobre a questão da fé, que considerava ser necessário apenas crer, não ficar perguntando. Jung relatou uma dessas experiências, que chegou a ser ao mesmo tempo triste e reconfortante: seu pai teria sido responsável por seu catecismo. Em determinado momento, ao ler sobre a Santíssima Trindade, questiona como é possível que Deus se manifeste em três ao mesmo tempo. Na aula do catecismo, o pai resolve pular o tema, assumindo que não entendia muito sobre o tema. Jung teria se decepcionado, mas admirado também a honestidade do pai. Então ele tinha essa visão de uma amargura presente. Na reunião de Zofingia que seu pai participou, Jung viu outro pai, alegre, participativo, bem-humorado e se surpreende, pensando que a vida dele acabou ao se afastar de todas as possibilidades. Pouco tempo depois seu pai morreu e Jung conseguiu terminar o curso com a ajuda de seu tio.

Em 1897 Jung se tornou presidente do Clube de Zofingia, sendo seu discurso de posse uma dessas cinco conferências. Elas não estão traduzidas para o português, apenas para o inglês. Ali estão seus primeiros pensamentos. Tudo que ele viria a desenvolver depois já estava presente ali, como intuição, percepção, questionamentos, ou seja, sem base ou estofo teórico, ainda.

Na primeira conferência, em 1896, ele fala sobre As zonas limites da ciência exata. Quando a gente lê, é possível perceber o encadeamento das conferências até chegar na última. Então ele começa fazendo uma crítica à ciência exata e vai até uma crítica à teologia. O materialismo científico da época, mas também não deixa de fora uma crítica à questão teológica. Sempre esses dois lados, fora e dentro, externo e interno, psíquico ou espiritual e material, a questão da ciência e da teologia – sempre esses opostos estão presentes nas discussões que ele vai desenvolver.

A segunda conferência no ano seguinte: Alguns pensamentos sobre psicologia. Ele não sabia ainda que iria abraçar a carreira de psiquiatria. A terceira ocorre em seu discurso de posse como presidente de Zofingia. Em 1898 realizou a quarta conferência, Pensamentos sobre a natureza e o valor da investigação especulativa, que tem uma reflexão filosófica fundamental: ele começa discutindo a questão do materialismo científico, desemboca na discussão filosófica e conclui com toda a base dos conceitos que ele vai desenvolver posteriormente.

A quinta e última conferência foi Pensamentos sobre a interpretação do cristianismo, com referência à teoria de Albrecht Ritschl, sobre o teólogo protestante e as considerações em relação à figura de Cristo.

Na primeira conferência, em novembro de 1896, ele começa a discutir a questão do materialismo científico. Século 18, Iluminismo, reforço da questão da ciência que desemboca em um positivismo lógico no século 19. Isso está no auge, a ponto de Nietzsche afirmar que Deus estaria morto. Ele vai afirmar que o materialismo científico é um gigantesco absurdo com pés de barro. O que significa isso? Que essa questão do materialismo científico pode levar à morte intelectual. Jung justificou a questão que resolveu abordar:

Os problemas complexos não são matéria para especialistas, mas para todo ser humano, e suas soluções objetivas ou subjetivas são ou deveriam ser a preocupação imperativa de todo o pensar humano. Ele está fazendo uma crítica ao ambiente acadêmico. As discussões que se referem à vida humana não têm que ficar restritas aos muros da universidade, elas precisam ser mais amplas, uma vez que envolvem todos. Ele já começa dando uma cutucada em todo mundo. Jung vai então explorando as teorias científicas, começando pela física. Quando você pega o enunciado da lei da gravidade, de que é característica da matéria atrair outros corpos, isso gera uma circularidade racional que não explica nada. Você precisa usar algum pressuposto, alguma suposição inicial para poder seguir em frente. É um postulado, e todo postulado não está calcado na experiência concreta, mas é uma inferência racional.

Depois ele discute a química, em especial a lei atômica. Lembrem que a física quântica ainda não apareceu, então o átomo ainda era a menor unidade da matéria. Como é possível a matéria que tem extensão ser constituída por aspectos sem extensão? É ilógico. Se você continuar fazendo um exame crítico das afirmações cientificas racionais, você vai ser conduzido para um domínio imaterial ou metafísico. Por exemplo, na questão do imaterial dos aspectos sem extensão – como uma matéria que tem extensão pode ser constituída por elementos sem extensão? Você cai no metafísico.

Seguindo na conferência, Jung diz que enquanto ficarmos na física e na química, o embate se resume entre a teoria conceitual, a lógica, e a realidade concreta. Então há um paradoxo entre essas duas dimensões. O que interessava para ele não era discutir física e química, era discutir as ciências biológicas, ou seja, a botânica, a zoologia, a fisiologia e a psicologia. Dimensões vegetal, animal, humano e psíquica. Ele lança mão do Kant, pois toda substância, até um elemento material simples, deve possuir uma atividade interna como a causa de sua operação externa (mais uma vez o interno e externo). Outra coisa importante: quando ele fala das ciências biológicas, chega a outro paradoxo ou divergência: se do ponto de vista da química e da física existe um conflito entre a razão e a realidade concreta, do ponto de vista das ciências biológicas existem duas teorias que não conflitam nesse aspecto – o mecanicismo e o vitalismo. A matéria tem vida, porque é próprio da matéria ter vida (o “bio” tem algum aspecto que promove a vida), ou precisa de algo para animar esta vida? Ainda com Kant, “tudo quanto no mundo contém um princípio de vida parece ser imaterial na natureza”. Daí vem um embate: como posso afirmar que um corpo vive a partir apenas de sua biologia? Ao mesmo tempo, como posso afirmar que um corpo material vive a partir de algo que é imaterial? Não temos escolha exceto confirmar a operação de causalidade no domínio do fenômeno concreto, mas podemos explicá-lo? Nunca. É possível aplicar a teoria da causalidade sobre o fenômeno, mas não explicá-lo a partir dessa teoria. Jung chega ao final da conferência para mostrar que o que queremos é permitir que o imaterial retenha suas propriedades imateriais, ele quer mostrar que existe um aspecto para além do orgânico-biológico-fisiológico do ser humano, que não é material, mas que anima esse corpo. Numa linguagem religiosa poderia ser a “alma”; na linguagem científica, a “psique”.

Vocês viram que ele foi encaminhando para falar do aspecto psíquico. Na segunda conferência, Jung pega a teoria racional da psicologia do Kant, apresenta, destrincha e, na segunda parte, apresenta a psicologia empírica. Ou seja, ele mostrou resultados de alguns autores que trabalharam a partir de fenômenos como a telepatia, a telecinese, premonição, sonhos proféticos e premonitórios. Ele vai usar alguns autores importantes do momento que, embora sejam criticados, têm um valor importante do ponto de vista da própria academia, para mostrar a necessidade dessas experiências concretas para corroborar a teoria e as inferências do pensamento. Como ele é muito criticado – e isso aparece, porque ele vai falando que vem de uma família que não tem meias-palavras – e para dizer que há fundamentação e base em suas afirmações, Jung se baseou em David Strauss, Schopenhauer e Kant, três figuras importantíssimas na época sem a menor discussão. Três figuras intelectuais importantes. Strauss fez uma avaliação de uma obra do médico Justinus Kerner (“Avaliação de a Vidente de Prevorst”), sobre uma paciente delirante, que Kerner acompanhou e não conseguiu diagnosticá-la como doente mental, apesar de demonstrar falas e comportamentos associados à loucura (falava um alemão erudito sem ter a menor possibilidade de ter aprendido, por ser uma pessoa simples sem acesso à educação formal ou pessoas que teriam ensinado, por exemplo). Como um psiquiatra avaliaria uma mística renana, por exemplo? Loucas, por afirmarem que falam com Deus, terem experiências com orgasmos, gritam. Um psiquiatra olha um depoimento desses e vê a loucura.

Hoje em dia aquele que duvida do fato do magnetismo animal e da clarividência que lhe confere, não deve ser chamado de cético, mas de ignorante. Essa é uma das ideias de Schopenhauer (em Parerga e Paralipômena) que Jung cita para reforçar o ponto de que existe algo além de uma mecânica orgânica que produza vida. A gente vai perceber o quanto ele está muito mais voltado para a teoria vitalista e, claro, o vitalismo não no sentido próprio da teoria quando foi lançada, mas do ponto de vista do psiquismo. É a psique que anima o corpo. De Kant, em Sonhos de um Visionário, Jung destaca a seguinte fala: confesso que estou fortemente inclinado a afirmar a existência de naturezas imateriais no mundo e a classificar minha própria alma entre esses seres. Esta obra de Kant é sobre as visões de um cientista sueco, que relata algumas experiências, como ele ter o conhecimento de um incêndio que acontecia em outra cidade sem ter como saber do acontecimento, comprovado por um mensageiro dias depois. Kant ficou impressionado e escreveu esse livro para discutir a questão da materialidade e imaterialidade – material em nossa perspectiva orgânica e imaterial em nossa psique.

Depois destas considerações, Jung diz: se pesarmos o corpo morto, ele pesa exatamente a mesma coisa de quando estava vivo. O organismo inteiro está ali, completo, pronto para viver, e ainda assim está morto, e não conhecemos nenhuma arte para fazê-lo viver novamente. O que aconteceu? Se está tudo ali, por que o corpo não continua vivendo? Ele faz uma crítica feroz à fisiologia moderna por conta disso. Na verdade, qual seria a confusão feita pela fisiologia? Ela toma a teoria da causalidade, mas confunde a causa com o efeito. Está claro que a vida existe, acontece como tem de acontecer, a despeito de todas essas leis da fisiologia. Ele fala sobre o princípio vital: O princípio vital se estende para além da nossa consciência, pois também mantém as funções vegetativas do corpo que, como sabemos, não estão sob nosso controle consciente. A base do funcionamento do corpo nos é desconhecida. Não temos consciência de que estamos respirando, mas, se não respirarmos, morremos; não temos consciência de que nosso sangue circula pelo corpo, ou de nossos batimentos cardíacos, mas, apesar disso, tudo funciona. O princípio desta vida não é consciente, está além da consciência. Esta questão da função animal e vegetativa teria então uma raiz comum: haveria algo por trás que promove a vida, que Jung chama de “sujeito real”, a alma. Alma, para Jung, não é a alma no sentido religioso, teológico, nem filosófico, mas no sentido psicológico. Alma é sinônimo de psique.

As questões sobre a vida humana estão tão emergentes e urgentes que não podemos ficar presos aos postulados da razão: “os postulados duros da razão e os meros sentimentos religiosos não podem aliviar as ruínas de nossa época a única coisa que pode fazê-lo são os fatos que diretamente estabeleçam a validade de algo além dos sentidos”. Tudo que experimentamos ultrapassa os sentidos. É aquilo que falamos. Podemos ter uma percepção tátil de algum objeto, mas essa percepção tátil deste objeto não é suficiente, é preciso termos uma referência anterior para que ela aconteça. Quando a gente entra em contato com algo que nós desconhecemos, observem isso no dia a dia de vocês, qualquer coisa (um objeto, uma situação, uma pessoa), imediatamente fazemos analogias com outras situações, objetos, para buscarmos algo de referência, de conhecido. Quando temos um sonho, na nossa imagem está muito claro o que aconteceu, mas não conseguimos passar aquela imagem, então ficamos o tempo todo ensaiando comparações, porque buscamos analogias com aquilo que conhecemos.

Essa discussão básica encaminha para outra, de fundo, sobre a vida do ser humano: o homem vive nos limites entre dois mundos. Ele dá um passo diante da escuridão do ser metafísico, lança-se como um meteoro incandescente através do mundo fenomenal, e então se conduz novamente a perseguir seu curso no infinito. Ou seja, o homem nasce, cresce e volta, como no Eclesiastes, “do pó ao pó”. Como isso se dá? Baseado em que critérios? Quais são as motivações que levam a isso?

Vou encerrar com essa outra fala, justamente porque resume toda a história que Jung discutiu nessa segunda conferência sobre a questão da psicologia racional e empírica. A teoria do Jung é experiencial. Não é uma especulação filosófica – ele odiava quando alguém falava que ele era filósofo, embora seja um pensador – no sentido de fazer inferências. É sempre vivenciada primeiro, experiencial. Se não tiver a concretude, não é possível falar sobre o assunto, teorizar. Você só consegue compreender teoricamente se vivenciou. E não é necessário vivenciar exatamente cada situação. Isso me faz lembrar na experiência de consultório de uma pessoa que está passando por uma situação difícil – um câncer, por exemplo – e questiona se alguém que não teve a doença pode abordar o assunto. Nunca tive um câncer, mas sei como funciona do ponto de vista de uma desgraça, e nós passamos por situações de sofrimento de forma semelhante – não igual, claro, mas semelhante. E tivemos experiências com outras pessoas também, então acesso a isso a gente tem. Por que a psicologia é importante?

Ele vai falar em 1912 em um texto chamado Novos Caminhos na Clínica – apêndice do volume 7 de suas obras completas -: quem quiser conhecer a psique humana (...) o melhor a fazer seria pendurar no cabide as ciências exatas, despir-se da beca professoral, despedir-se do gabinete de estudos e caminhar pelo mundo com um coração de homem: no horror das prisões, nos asilos de alienados e hospitais, nas tabernas dos subúrbios, nos bordéis e casa de jogos, nos salões elegantes, na bolsa de valores, nos ‘meetings’ socialistas, nas igrejas, nas seitas predicantes e extáticas, no amor e no ódio, em todas as formas de paixão vividas no próprio corpo, enfim, em todas essas experiências, ele encontraria uma carga mais rica de saber do que nos grossos compêndios. Vejam que o pensamento já estava incipiente na conferência de 1896, que veio se consolidar e se fundamentar para aparecer de forma mais clara posteriormente.

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Lilian Wurzba

Psicóloga e supervisora clínica. É professora dos cursos de especialização em Psicologia Junguiana, Psicossomática, Dependências, Abusos e Compulsões (DAC) e Arteterapia e Expressões Criativas do Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa (IJEP), em São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília. Graduada em Psicologia pela Universidade Paulista, mestre e doutora em Religião pela PUC-SP. É Pesquisadora do Nemes (PUCSP), professora da Casa do Saber e do MIS. Autora do livro: "Natureza Irreal ou Fantástica Realidade? Reflexões sobre a melancolia religiosa e suas expressões simbólicas na obra de Hieronymus Bosch"

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Jung: Vida e Obra
Jung e a Alquimia
Os Tipos Psicológicos de Jung
Uma Introdução Guiada e Descomplicada ao Pensamento de Jung
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