De um ano para outro
Por Ana Suy
Talvez o final de um ano seja um grande domingo, seja um grande "entre". Entre um ano e outro, a gente se identifica com aquilo que não é bem uma coisa e também não é bem outra coisa.
É comum querermos nos identificar plenamente: a uma causa, a um estilo de vida, a uma ideologia, a um jeito de ser, a uma maneira de amar. E é comum que nossas identificações sejam incompletas! Um pouquinho daqui, um pouquinho dali, um pouquinho de lá e de pouquinho em pouquinho vamos compondo o mosaico que é o nosso eu.
Quando Jacques Lacan escreve sua teoria sobre o estádio do espelho, diz que há um júbilo que experienciamos nossa imagem refletida no espelho ao encontrar nossa imagem unificada. Esse espelho ao qual Lacan se refere não é o espelho objeto, mas é, essencialmente, o espelho que é o olhar do outro. Assim a gente constitui a nossa própria imagem, pelo olhar do outro. Nós nunca nos vimos de fora, mas apenas supomos como estamos sendo vistos "de fora", ou seja, pelo olhar do outro.
Digo isso tudo para tentar transmitir um pouco do por que entendo que temos tamanha obsessão pelo todo: olhar a coisa integrada, harmônica, inteira, nos causa o reencontro com essa experiência de júbilo à qual Lacan se refere: um alívio!
Essa imagem, no entanto, não é mais do que uma construção para o outro. Freud disse que o eu é uma estrutura de fachada. No fim do dia e, ainda mais no fim do ano, somos nós com nossos avessos, poréns, hipocrisias, crises existenciais e pontos de obscuridade. Mas se as coisas vão minimamente bem, isso não é tudo. Também somos nós com aqueles (poucos) que nos são caros e que suportam nossos avessos, por vezes, mais até do que nós mesmos.
Que esse "entre" um ano e outro, ao qual nos identificamos, também sirva para a "entrada" de boas possibilidades!